30 novembro, 2005
Lancheria Moby Dick
- Quer uma cachaça?
- Hum, que bom, que que é?
- Vinho.
- Hum.
Um minuto depois:
- O sarará teve aí, o motorista da Visate?
- Nem vi mais esse.
- Tô devendo ele, quero pagar.
- Hum.
Entra um rapaz, vintepoucos:
- A Vanessa pediu pra pegar uma rapadura e um salgadinho, ela tem conta aí.
- Não sei, vou ver.
- Ela tem conta aí, é a Vanessa, trabalha ali no contador, aqui perto da parada, é pra anotar.
- Não tô achando.
A mulher:
- Se é do contador, periga tu tá devendo pra ela.
- Não tá aqui no caderno, vou anotar. Qual é a rapadura?
- Pode ser essa aí de amendoim grandona.
- E o salgadinho?
- Qualquer um, é pra ela mesmo.
- Hum.
Eu, depois do pastel:
- Quanto lhe devo?
- Um e cinqüenta, magrão.
- Como é seu nome, vizinho.
- Juvelino.
- Sabe por que entrei aqui?
- Por que?
- Por causa do nome.
- Hum.
29 novembro, 2005
Breno escutava Nina Simone enquanto arrumava a cama com os lençóis limpos que pegara do armário. Um jogo de lençóis azul. É bom dormir no azul, pensou. Tanto quanto deve ser doce morrer no mar. Era uma noite calma, depois daquela fase tão cheia de pendengas pela qual tinha passado.
Agora é que podia se perceber vivo. Quando deitava esticava as pernas até a beirinha da cama, curtindo a sensação de saber a extensão do próprio corpo, de sua casca. Erguia o braço pra cima e roçava a mão esquerda na parede da cabeceira, sentindo a aspereza na pele, divagando sobre superfícies, contatos, o tato em si. Enquanto agora ajeitava os travesseiros, com a meticulosidade que só um virginiano com ascendente em escorpião pode ter, o celular sobre a mochila tocou. Era Clara, claro.
Clara sempre ligava em horas inesperadas e entre tantos motivos esse era só mais um deles que fazia Breno gostar tanto dela nessa descoberta recente. Há tempos queria ter alguém pra quem pudesse ligar a hora que fosse, um alguém pra falar de madrugada, quando as reflexões sobre o próprio corpo não lhe descansavam tanto assim ou quando o CD da Elizeth Cardoso acabasse e ele tivesse preguiça de levantar pra colocar rodar de novo. Agora tinha a ela. Por vezes telefonava, às três ou quatro da manhã, só pra dizer "tu tá dormindo?" e rirem juntos ou ficarem com o gancho espremido entre o ombro e a orelha, deitados, um acalentando o sono do outro.
Essa noite ela estava sem jeito, chegou até a dizer um "desculpe te encher". Mais do que depressa ele rebateu com o tradicional "tu nunca enche". Foi quando menos esperava, que ela continuou: "a gente sempre enche, Breno. Uma hora ou outra a gente acaba enchendo... é uma palavra que chega torta, é um espirro no cinema, é uma pergunta quando todo mundo se calou, é um comentário indevido, é uma piada irônica que ninguém entende... no fundo, no fundo, uma hora ou outra a gente enche sim." De fato, ele parou e teve de concordar com "é verdade. Sem perceber, apenas seguindo, a gente enche. Mas sei lá, é que tu nunca me enche mesmo". Sorriram os dois. Um silêncio ecoou no quarto enquanto Nina cantava "My baby just cares for me". Não precisavam trocar palavra alguma. Sabiam-se vivos e mais do que isso, sabiam do amor para se encherem em momentos oportunos e precisos.
la vapeur des fenêtres*
meu amor passeia um jazz no interior do trumpete
um retrato em branco e preto chet baker fim de tarde
uma outra amsterdam
meu amor que se evola devagar contra as janelas
onde roço as pernas dela
e quanto mais a tarde ande mais soletro ao meu amor
chansons de michel legrand
e com o dedo escrevo cartas poemas mensagens
em janelas embaciadas de vapor lua e miragem
devagar devagarinho
sobre a encosta acolchoada
sinto o cheiro dela
e ela o meu trumpete
(*) do meu inédito "Anel postiço em merengue" (2005)
crédito da foto: Herman Leonard, daqui.
Loucura de Amar II
Não abro mão de poder sentir saudades suas,
Saudades refletidas nas pupilas inchadas de noites em claro
...
Você causa uma violência que eu gostaria de ter contra esses momentos de estagnação.
28 novembro, 2005
erocosmogonia*
teu vingador de insetos
teu general de geléia
teu fabricante de água
teu cavaleiro de linces
teu matador de formigas
teu cozinheiro de araque
teu alicate de névoa
teu secador de talheres
teu edredom de geada
Pobre Mundo
O nascimento do sobreviver,
A reconstrução mundial.
A destruição do imoral,
No mundo em que nada pode real ser.
Em meio à fome, dominação ao homem.
Manipulador sistema de segurança.
Objetivos frívolos, decodificados em códigos de barra.
Energia elétrica,
Mundo informatizado, submetido a cabos,
Energia paraplégica.
Mundo tão independente, um indesejável ente.
Um simples corte, que sorte...
fios de fantoches se arrebentam.
Tempo de incinerar a safra perdida.
Ou talvez, um simples intruso,
Acaba tendo conhecimento,
Acaba com o conhecimento.
_Que mundo é esse? Mundo biltre,
Repugnante, irritante, puro purgante...
Controlo o controle descontrolado;
Cansei, hoje, desse mundo!
Quero pegar uma caneta, comandá-la.
E ... estou aqui, fronte a um conjunto de teclas,
teclas que regem, aparentemente inanimadas;
Madrastas!
Esconder-se em uma caverna, a solução?
Caverna de Platão,
Caverna em Plutão,
inalcançável, então.
Acho que tudo isso já me infectou também!
25 novembro, 2005
.
as canções que tocam dentro 7
Povo de Deus *
Alexandre Florez
Eis que nosso Deus
nunca foi branco
da cor da columba do espírito santo
mas de raça mestiça nascido dos hebreus.
Fala uma língua esquecida
que o povo compreende
é artista de circo, teatro mambembe
contador de histórias
pescador e artesão.
Nosso Deus é mulato e saiu de passista
destaque no asfalto, ele é malabarista
com trejeitos nagô e ginga de afoxés.
Não tem olhos azuis, não é caucasiano
é hindu é Mané é Vavá é cigano
é mestre Jacó tocando bandolim;
nosso Deus reparte o quanto tem
entre os vagabundos,
acolhe os desvalidos
toda escória do mundo
prefere os humildes
não se sabe porque.
Deixou as catedrais, foi morar
nas malocas
viver nas palafitas, nos barracos, nas choças
e entre a gente no morro
desapareceu...
24 novembro, 2005
Só depois me toco que eles são parentes. O amigo e o ex. Bem, foi-se também.
as canções que tocam dentro 6 - pós emoções in loco
Espaço
Vitor Ramil
Quarto de não dormir
Sala de não estar
Porta de não abrir
Pátio de sufocar
Carta no corredor
Eu não vou nem pegar
A voz no gravador
Não quero escutar
A lua é um farol
O vento, um assobio
A foto é um out-door
Teu rosto em 3x4
Mostra que
Tudo
Na madrugada
Insiste em ficar
Já que existe
Tanto espaço em mim
Juro
Na luz do dia
Todas as coisas
Vão me perder
Como te perdi
* A imagem é de pintura do grande Andrew Newell Wyeth.
23 novembro, 2005
Peito Vazio ou Um microconto pra Cartola
"Eu sempre fui sincero e você sabe muito bem", ecoava nos versos da música que o vizinho debaixo escutava a todo volume. Talvez fosse vingança por ela ter ouvido os 3 CD´s d'O Grande Encontro a partir das onze da noite na quarta passada. Agora ria quando lembrava da Elba Ramalho se esganiçando no som do banheiro com "A todo mundo eu dou psiu, psiu, psiu, perguntando por meu bem" e os barulhos de vassourada no chão clamando pelo tal "psiu" de fato.
Mas Estela dava de ombros pra sinceridade. Queria umas mentiras, uns enganos fortuitos pra alimentar o seu buraco. Agora olhava pro telefone e encarava aquele Motorola como talvez nunca tivesse olhado para alguém a quem amou. Um olhar íntegro, inteiro, concentrado. Pensava em ligar, pegava o aparelho na mão, até digitava o 910... e depois desistia. Não que a essa altura o Norberto merecesse um carinho seu, mas pôxa, aquilo não ia passar enquanto via Tela Quente no 12. Tela Quente, pé frio, companhia alguma. Esse era o retrato da sala. É a tal da falta que a gente nunca percebe e então se faz. A falta da rusga que seja, do ruído, da gritaria porque ele tinha comprado Parmalat desnatado e ela gostava do semi.
Agora ela estava semi. Semi-entediada, semi-querida, semi-bonita. Nada era pleno e talvez isso fosse durar muito tempo. Uns meses, quem sabe. Mas é como diz o Chico, "pra onde vai o amor, depois que o amor acaba?". Uns meses, então, quem sabe, bastariam pra desaguar a tristeza, beber em outras companhias, alterar a consciência até se sentir apta a dançar algo da Ivete Sangalo enlouquecidamente ou chamar o pessoal pra ir no videokê do Casarão, cantar com as putas.
O videokê, bem sabe, a música, sempre a salvava, de uma forma ou de outra. Mesmo que ao final da noite, embargada de Polares com a turminha bipolar, entoasse Cartola bem alto, já quebrando os saltos da sandália:
// Procuro afogar no álcool
gaveta de roubados 2
Gabriel Silveira
enquete
1. porque choviam cânticos?
2. porque é sovina, e pagar achava que tinha?
3. porque é punk?
4. porque ficou escutando jazz-fusion em seu flat?
5. porque estava no shopping com seus amigos punks, incluindo o Frank?
6. porque estava desprevenido sem sua camiseta rasgadinha?
7. porque dormiu de chambre?
8. porque estava na Velha?
9. porque estava off-line?
10. porque seu amigo marcodemenezes o mandou plantar carnaúbas?
quatro e meia, um sabiá
Esse o esoterismo fatal que o sabiá infunde aos olhos: ele é pelo não-visto, afinal estamos na cama e ele lá, no galhedo. Não é fênix, pomba, simorgh, águia ou grou. Como estes, no entanto, é a nossa alma: é o canto in-útil na madrugada, que nada vale, nada soma, nada tenta representar; é o poema que te provoca e te dá tontura, no teu zênite e no teu caixão futuro.
Por isso, não me importo: que sejas tu que me despertes, ó bicho do amanhã! Vai, sabiá, faz brilhar teu antidiscurso de ave sagrada no negror persistente das minhas quatro e meia!
22 novembro, 2005
crônica de uma noite de verão
21 novembro, 2005
Mais um exercício
Ele ouvia "Lígia" há mais de quarenta minutos no Repeat. Até mesmo João Gilberto já devia estar cansado de tudo aquilo. Mas algo teria de acalmá-lo depois de receber a conta de seu Vivo Pós com o valor de R$ 288,30. Duzentos e oitenta e oito reais com trinta centavos, porra! Nem na adolescência eu devo ter falado tanto, pensou ele. Mas na adolescência ele não tinha tanto o que falar mesmo.
As canções que tocam dentro 5
Dia Branco
Se você vier
Pro que der e vier comigo
Eu te prometo o sol
Se hoje o sol sair
Ou a chuva
Se a chuva cair
Se você vier
Até onde a gente chegar
Numa praça na beira do mar
Um pedaço de qualquer lugar
Neste dia branco
Se branco ele for
Esse tanto, esse canto de amor
Se você quiser e vier
Pro que der e vier comigo
Se branco ele for
Esse canto, esse tanto,
Esse tão grande amor, grande amor
Se você quiser e vier
Pro que der e vier comigo
18 novembro, 2005
um exemplo tampouco pequeno de por que este poeta admira Adília.
Este lugar não é teu, quase ouço.
Mas e eu?
Eu que quero ficar
Tomar banho de chuva
Me espraiar ao sol
Rolar na grama
Tomar suco
E manchar o lábio, meio cor de uva?
Eu que te adoro, que ardo
Moro o olho em ti e esqueço do fardo
Mas de repente te odeio, te mato
E te digo baixinho:
Deixa eu ficar,
Assim, só mais um pouquinho?
16 novembro, 2005
Frações de Palavras
Palavras delirantes que sussurram desta casa, Nas fibras das paredes largas, Permanecem anos guardados; Transmitem desleais sentimentos, Fogem delas instantes de solidão insolúveis em mim. A tintura lascada, em que partes, Com as minhas unhas, agora curtas, foste. Marcas da insignificância de meus versos, transmissores apáticos como meu sentimento revés. Na grama escura e não aparada dos fundos, O verde insiste em renascer, o verde; Nem ele sabia que estava feio, Nem ele sabia que as flores já estavam mortas, Nem ele sabia que encobrira o meu caminho até o portão; As frestas da janela fechada, Filtram pensamentos inóspitos aos vizinhos, Havia ainda vizinhos? Se me fosse mostrada, a casa minha, não me aproximaria. Murmúrios de liberdade sobressaem em noites de chuva, Gotas d’água sufocantes, Pontilhados que fizeram no chão – guias internos, Internamente revestidas de ar puro e sentidos. Sentidos que tornavam toda palavra à-toa; Toda palavra insana em beleza, simplesmente; Toda completa fração de palavra estava longe, a casa, Não cabiam nela, as palavras. |
tábua riscada
pousadas
sobre a tábua riscada
por mil anos
estão aqui
unhas e dedos trançados
estão aqui gentis e macias
como chuvas de escaninho
estão aqui nesse pescoço
anel postiço em merengue
fosso de nenúfares
veja só o senhor e a senhora
no fim das contas não passamos de carne viva
11 novembro, 2005
Circunstâncias Atemporais
Chuva de sempre,
Chuva nefasta.
Aquela que inunda as casas e as castas,
Aquela que é desgraça ou benção,
Aquela que interrompe ou une
Laços de família.
A mãe manca reclama;
O pai pálido se assenta;
As crianças cretinas imploram por atenção...
Discussões de um clã,
Tecem clandestinas formas de amar.
Pequenas claustrofobias em cada um,
Em cada dia de chuva.
Chove agora aqui,
Chove como sempre,
As intempéries (como imaginam),
a chuva não vai levar.
10 novembro, 2005
esse samba vai pro Stan Lee, pro compadre Anescar e pro Sérgio Sampaio.
samba do desencaixe
como a cordinha do brinquedo não encaixa
como a moeda não encaixa no cofrinho
como a caixa dentro doutra dentro doutra não encaixa
e não encaixa o bilboquê no seu furinho
como a macega não encaixa no ancinho
e couve-flor não se cria em apartamento
não encaixa esta face em meus espelhos
nem a mirada que se mira um só pouquinho
não encaixa essa sandália no asfalto
se não encaixa pavlov em meu lacan
as mãos queridas buscam névoa não alcançam
eis que a névoa não se encaixa na manhã
num desencaixe vai vagão por sobre o trilho
que sabe a mão do maquinista manejar
se num instante desencaixa o maquinista
vagão e trilho vão por fim desencaixar
como a mandrágora não se encaixa na salada
e salamandras não freqüentam serpentários
o cubo mágico não encaixa não encaixa
geladeira não conversa com armário
como a sandália não se encaixa no pezinho
nem o pistilo se encaixa ao gineceu
esse sorriso nessa boca não encaixa
e o rochedo não se encaixa em prometeu
quem sabe a flor que jaz mortífera no lodo
quem sabe a brisa suicida do crepúsculo
talvez a onda tombe funda lá na lua
talvez do todo edifique-se o escombro
se nos x-men não se encaixa o volverine
no peito o tolo não encaixa não encaixa
na caixa alta dos motivos mais mesquinhos
na caixa baixa dos destinos mais esconsos
09 novembro, 2005
as canções que tocam dentro 4*
08 novembro, 2005
letras miúdas
aquilo que te disse sobre as letras miúdas
todo meu carinho
e o cheiro de pátios delicados
- adri, essas poucas palavras porque meu amor é tanto.
valsa à guisa de resposta a Clarissa*
blade runner waltz
clarissa clarissa
brincas assim tão séria
andróide envolta em preguiça
o anjo dentro da fera
a asa do sonho atiça
bonecas fadas piratas
brincas assim - fustigas -
teu coração às estrelas
vênus sob a treliça
clarissa clarissa
O BONDE
morre no meio da praça
sem dono e sem graça
sem ter mais pra onde ou porque
já que esse bonde não passa
ninguém mais o espera
quem dera eu pudesse entender
vira brinquedo sem dono
que o próprio abandono
correndo no tempo desfaz
fora de linha e de moda
não passa, não corre, não leva mais
quem não quiser chorar
finja que vai partir
toma o lugar no bonde
não peça que ande
nem diga por onde seguir
lembre que só depois
quando chegar ao fim
mesmo sem brilho e sem glória
verá sua hisória contada assim
passa em seu passo tranqüilo e cansado
de quem já sabe de cor seu destino
para, suspira e prossegue
vai percorrendo rota de sua rotina
de sempre chegando ir partindo
por um caminho traçado no chão
cantando, contente, tim-dim-dim, tim-dim-dim
chega ao ponto final
vê companheiro confessa
que o bonde sem pressa
chegava depressa demais
quem não achava o dinheiro
saltava ligeiro, corria e pegava o de trás
guardo no meu pensamento
transformo em cantiga
momentos que foram tão meus
e hoje quem passa nem liga
nem pensa em dizer adeus
Sidney Miller foi um compositor que em sua curta obra, interrompida em 16/7/1980, teve a sensibilidade singular dos grandes poetas da música popular brasileira. A maneira como descrevia situações e personagens, de maneira poética, simples mas ao mesmo tempo complexas, faz com que o ouvinte experimente sensações que só a arte pode proporcionar. Como em sua estrada que “parece um cordão sem ponta, pelo chão desenrolado, rasgando tudo que encontra, a terra de lado a lado". Seu palhaço “que na vida já foi tudo, foi soldado, carpinteiro, seresteiro e vagabundo, sem juízo e sem juízo fez feliz a todo mundo, mas no fundo não sabia que em seu rosto coloria, todo encanto do sorriso que seu povo não sorria”.
Antes de morrer Sidney estava com um projeto de lançar um lp independente, que se chamaria Longo Circuito. Já havia escrito o fac-símile de parte da sinopse onde conta que “em 1967, no Rio de Janeiro, mais exatamente na rua Gustavo Sampaio (Leme), havia um bar, conhecido como Bar do Careca, freqüentado quase que exclusivamente por músicos. Uma espécie de ponto de encontro da geração que estava sendo (ou viriam a ser) revelada pelos festivais da época - exemplo Milton Nascimento, Gutenberg Guarabira, etc. Uma noite passando pela porta daquele bar uma pessoa me disse o seguinte : - tem uma moça lá dentro, que acabou de chegar de Juiz de Fora, e que está tomando cachaça e tocando no violão um chorinho que ela compôs no ônibus quando viajava pra cá. Entrei e vi pela primeira vez Sueli Costa. Ouvi o choro, me apresentei a ela e pedi permissão para fazer uma letra .Ela riu, falou baixinho alguma coisa que não entendi, mas percebi que havia consentido....nessa época algum projetor, do Rio, governador ou coisa que o valha, tinha decidido colocar os bondes, recém saídos de circulação, nas praças públicas, para recreação de crianças. Fiz então em cima que me deu a visão do meu transporte de colegial, transformado em brinquedo, a letra daquele choro. Um dia, pronta a música, Maurício Tapajós ouviu e disse - choro sem terceira parte não tem caráter - assim a parceria cresceu”.
Em 1983 foi lançado pela FUNARTE o lp intitulado simplesmente Sidney Miller, que foi uma espécie de continuação do projeto “Longo Circuito”, que graças a seus parceiros e amigos (entre eles o próprio Maurício Tapajós) pode, na medida do possível, ser concretizado.
Sidney Miller
18/4/1945 - 16/7/1980
cabelos & pontas
balas berbau. meu vô de poncho. minha vó magrinha. meu outro vô careca. minha outra vó castelhana. pêssego-do-mato. carlos zéfiro. coleção de carteiras de cigarro. incêndio na destilaria. morte do pai do josué. o cheiro da fábrica de botões. escolinha espírita dos domingos. esporte clube uruguaiana. ruas de pedra. ruas de paralelepípedos. ruas de asfalto. ruas de asfalto derretendo. meu tênis novo com uma camada de asfalto duro. cacharel. cabelos&pontas. tarzan. odin. tannus. miss marvel. namor e os inumanos. romã. galaxie trio. o galaxie do tio. garrafas crush. a digoxina do vô. o minister do vô. cachorros lambendo veneno. chuva de abacates. sexus nexus plexus. pra não dizer que não falei de flores. coroa-de-cristo. autorama que não tive. colégio marista. colégio metodista. escola pública. escola da rua. pequena aristocracia decadente avec elegance. meu tio e o konktik. o fuca do pai. laika barão tôco cola-fina os cães todos. veneno para cães. creme rinse. ts eliot. teilhard de chardin. a ilha do tesouro. califórnia da canção. trago-fino 3 fazendas kicana as canhas todas. meu orgulho besta. minha raiva. minha primeira ficção. o guarda não vai gostar disso zé colméia. o tempo dos assassinos. cacaréu. tramandaí. o salso. pão com manteiga e açúcar. libres. obelisco. estátuas eqüestres. calças cáqui. pelegos. distintivo. revista placar. césar passarinho. bebeto alves. seu morocho. minhas primas. rua santana 1890. cohab nova. minha mãe cozinhando mondongo. eu levando um tombo. eu levando um choque. a correnteza me levando. ele&ela. tex. conan doyle. ferro carril 0 x inter 15. ferro carril 0 x grêmio 1. hemoptise. tv colorado. tapufe. seu aquiles. creme nívea. minuano limão. minha mãe cozinhando língua com ervilhas.
quem quiser que conte outra.
um escafandrista
submarino
e quando todas essas serras
forem ilhas?
Sebastopol? A Roca?
Vila Cristina?
todas as estradas em poeira
alimento para meros e marlins
dever de casa sempre lembrar
em toda parte o mar está
musas & deusas & loucas*
musas modernas caberiam na palma da mão
deusas hodiernas roeriam à luz de lampião
loucas etéreas pra castigo de toda paixão
não
musas serenas ririam de mim
deusas pequenas diriam que sim
loucas terrenas retornariam do fim
não
na minha mão só cabem migalhas
que só acendem fogos de palha
e tresandam o que o valha
não
musas deusas loucas
confusas chinesas roucas
deidades harpias pastoras
valem o quanto pesam
valem o quanto pensam
valem o quanto furtam
não
na minha mão não cabem helenas
lesbos tróias cartagenas
de um aquiles valgo
de um ulisses gago
na minha mão navegam falésias
na minha mão aderem macegas
de um perseu caído
de um orfeu mordido
por tebas tróias cartagenas
não
na minha mão não cabem ciganas
das casas pernambucanas
(*) poema publicado originalmente em livro algum, ano supostamente de 2003. virou letra - com modificações espertas (não publicadas aqui, por certo) - pela mão do meu parceiro Vinicius Todeschini (Bayo the lyon).
as canções que tocam dentro 3
Quem me vê sentado
atrás dessa mesa de escriturário,
não vê o tarado, o louco, o sanguinário,
o bárbaro sem véu,
o estripador cruel.
Não me vê no convés
de um veleiro de três mastros
me guiando pelos astros
a caminho de Bornéu.
Não sabem que eu roubo
meninos na praça quando a tarde cai
e que os vespertinos já me apelidaram
de monstro assassino
do Parque Shangai...
Mas eles não sabem
que eu sou gigolô de beira de cais
que eu sou o autor do crime da mala
que eu larguei o trapézio por beber demais...
E nem imaginam
as atrocidades que vou cometer
Não desconfiam
que a causa de tudo
é não conseguir me esquecer de você
Eu não consegui
me esquecer de você...
(*) em um disco que só tem coisas geniais (Aldir Blanc, 50 anos - 1996), essa canção (de Márcio Proença e Aldir Blanc) me salta aos olhos. e segue tocando dentro da minha cabeça, desde que meu amigo Diogo me possibilitou ouvi-la, assim, de presente.
07 novembro, 2005
Vem a brincar no meu pátio
Traz tua bola, teu pião, tua pandorga
Me diz que te divertes
Que sou tua melhor companhia
Que picolés, algodões doces e bolachas Maria
Ainda hão de ser devorados por nós dois
Me diz que casas em árvore serão nossos projetos do futuro
Que bonecos de pano serão nossos filhos mais bonitos
Depois vai embora
A medida em que te chamam
No momento em que mais clamam
Tua presença em outro lar
04 novembro, 2005
Monsueto Menezes
Guinga...
O homem é um monstro. Do bem. É, com licença de Edu Lobo e Milton Nascimento, o maior dos pós-jobinianos em atividade. Não fosse pelo próprio Tom Jobim, também seria o maior pós-pixinguiniano da atualidade. E como Tom, ele ama Villa Lobos, que amava Pixinguinha, que amaria Guinga, se o ouvisse. Sei lá, quem sabe até ouve.
(*)Matéria publicada no site "Sintonia Fina", de autoria do compositor Nelson Motta. Ilustra este postado foto de Roberto Cifarelli, fotógrafo luminoso do mundo musical.
dez e um pouco
bom dia.
amanhã chove será.
meu tio*
meu tio
que enfiado em sintéticas botas
caçava o nada na charneca.
meu tio que adentrava
na biblioteca
os pés embarrados
em busca do livro
sem fim.
lá ia meu tio
no pasto amarelo
com seus perdigueiros
pegar pelas asas
a ave invisível.
levava no bolso
rosáceos cartuchos
charutos molhados
analgésico ácido
lá ia meu tio.
de camisa amarela
crocodilo no peito
aros grossos na face.
um pedaço partido
do Ulisses
perdido em seu bolso.
03 novembro, 2005
O que se sabe tarde.
margem distante dos homens.
Bati à porta,
à espera de alguém.
O alguém se foi
em doçura converte o próprio horror.*
O gozo,
Ainda me resta, pouco,
nas pseudo-veias-grossas,
algo que pulsa.
Pulsátil vibra e derrama,
uma água de nascente humana,
densa como lama.
Se ao menos jorrasse,
Deixaria de morrer aqui.
*Carlos Drummond de Andrade
01 novembro, 2005
Quando o amor vacila
o eterno o átimo o leve *
amor eu que quero com flores e ócio
amor eu refino pulsatilla e phosphorus
amor eu que quero compartir minha mesa
amor que eu quero cultivar gentilezas
amor que eu quero em almofadas e neve
que eu quero o eterno o átimo o leve
amor eu destilo e calo o perfume
que emana sutil do amor do teu lume
amor te preciso para as vinte e uma
amor te visito na Alfredo sem brumas
amor te envio este anel e este dedo
amor te ofereço cem bocas com beijos
amor te deliro com unhas e zelo
minha pele de água, tua pele de pêssego
amor eu te quero aqui dentro agora
e aqui fora eu te quero com todos teus dentes
amor vem agora sem pressa demora
que esses versos possessos eu faço somente
por tua beleza e contentamento
(*) atendendo a inúmeros pedidos meus, publico aqui esse poema inédito do meu livro igualmente inédito "Pés de aragem" (2005). Esse é pra Adri.