30 novembro, 2005

e dê-lhe Nietzsche.


Quando tu olhas durante muito tempo para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.

Lancheria Moby Dick

Entra uma mulher, mais ou menos quarenta e cinco, ouve:
- Quer uma cachaça?
- Hum, que bom, que que é?
- Vinho.
- Hum.
Um minuto depois:
- O sarará teve aí, o motorista da Visate?
- Nem vi mais esse.
- Tô devendo ele, quero pagar.
- Hum.
Entra um rapaz, vintepoucos:
- A Vanessa pediu pra pegar uma rapadura e um salgadinho, ela tem conta aí.
- Não sei, vou ver.
- Ela tem conta aí, é a Vanessa, trabalha ali no contador, aqui perto da parada, é pra anotar.
- Não tô achando.
A mulher:
- Se é do contador, periga tu tá devendo pra ela.
- Não tá aqui no caderno, vou anotar. Qual é a rapadura?
- Pode ser essa aí de amendoim grandona.
- E o salgadinho?
- Qualquer um, é pra ela mesmo.
- Hum.
Eu, depois do pastel:
- Quanto lhe devo?
- Um e cinqüenta, magrão.
- Como é seu nome, vizinho.
- Juvelino.
- Sabe por que entrei aqui?
- Por que?
- Por causa do nome.
- Hum.

29 novembro, 2005


Breno escutava Nina Simone enquanto arrumava a cama com os lençóis limpos que pegara do armário. Um jogo de lençóis azul. É bom dormir no azul, pensou. Tanto quanto deve ser doce morrer no mar. Era uma noite calma, depois daquela fase tão cheia de pendengas pela qual tinha passado.

Agora é que podia se perceber vivo. Quando deitava esticava as pernas até a beirinha da cama, curtindo a sensação de saber a extensão do próprio corpo, de sua casca. Erguia o braço pra cima e roçava a mão esquerda na parede da cabeceira, sentindo a aspereza na pele, divagando sobre superfícies, contatos, o tato em si. Enquanto agora ajeitava os travesseiros, com a meticulosidade que só um virginiano com ascendente em escorpião pode ter, o celular sobre a mochila tocou. Era Clara, claro.

Clara sempre ligava em horas inesperadas e entre tantos motivos esse era só mais um deles que fazia Breno gostar tanto dela nessa descoberta recente. Há tempos queria ter alguém pra quem pudesse ligar a hora que fosse, um alguém pra falar de madrugada, quando as reflexões sobre o próprio corpo não lhe descansavam tanto assim ou quando o CD da Elizeth Cardoso acabasse e ele tivesse preguiça de levantar pra colocar rodar de novo. Agora tinha a ela. Por vezes telefonava, às três ou quatro da manhã, só pra dizer "tu tá dormindo?" e rirem juntos ou ficarem com o gancho espremido entre o ombro e a orelha, deitados, um acalentando o sono do outro.

Essa noite ela estava sem jeito, chegou até a dizer um "desculpe te encher". Mais do que depressa ele rebateu com o tradicional "tu nunca enche". Foi quando menos esperava, que ela continuou: "a gente sempre enche, Breno. Uma hora ou outra a gente acaba enchendo... é uma palavra que chega torta, é um espirro no cinema, é uma pergunta quando todo mundo se calou, é um comentário indevido, é uma piada irônica que ninguém entende... no fundo, no fundo, uma hora ou outra a gente enche sim." De fato, ele parou e teve de concordar com "é verdade. Sem perceber, apenas seguindo, a gente enche. Mas sei lá, é que tu nunca me enche mesmo". Sorriram os dois. Um silêncio ecoou no quarto enquanto Nina cantava "My baby just cares for me". Não precisavam trocar palavra alguma. Sabiam-se vivos e mais do que isso, sabiam do amor para se encherem em momentos oportunos e precisos.

os sons de um novembro terminando

Lhasa: The Living Road, 2004



Joaquín Sabina: Alívio de Luto, 2005

la vapeur des fenêtres*



meu amor passeia um jazz no interior do trumpete
um retrato em branco e preto chet baker fim de tarde
uma outra amsterdam

meu amor que se evola devagar contra as janelas
onde roço as pernas dela
e quanto mais a tarde ande mais soletro ao meu amor
chansons de michel legrand

e com o dedo escrevo cartas poemas mensagens
em janelas embaciadas de vapor lua e miragem

devagar devagarinho
sobre a encosta acolchoada
sinto o cheiro dela

e ela o meu trumpete


(*) do meu inédito "Anel postiço em merengue" (2005)
crédito da foto: Herman Leonard, daqui.

Loucura de Amar II

Não abro mão dos meus momentos de solidão.
Não abro mão de poder sentir saudades suas,
Saudades refletidas nas pupilas inchadas de noites em claro

...

Você causa uma violência que eu gostaria de ter contra esses momentos de estagnação.

28 novembro, 2005

erocosmogonia*


teu cantor de tempestades
teu catador de galerias
teu cobertor nas noites frias
teu travesseirinho de viagem

teu caçador de miragens
teu planador sorrateiro
teu condutor de geleiras
teu lavrador de mensagens

teu vingador de insetos
teu chinelinho felpudo
teu bule de asas mudas
teu amolador de giletes

teu general de geléia
teu marginal de vitrines
teu guardador de retinas
teu pastor de alcatéias

teu fabricante de água
teu viaduto de gelo
teu verdureiro elegante
teu falsificador de palmas

teu cavaleiro de linces
teu cavalheiro de plumas
teu assoprador de brumas
teu apontador de lírios

teu matador de formigas
teu plagiador de piadas
teu agenciador de fadas
teu uniforme de briga

teu cozinheiro de araque
teu engenheiro de ciúmes
teu jardineiro de nuvens
teu merengue de conhaque

teu alicate de névoa
teu elevador de vidro
teu vidro de lenitivos
teu cadeado de neve

teu secador de talheres
teu postal de maracaibo
teu amestrador de galgos
teu furador de alicerces

teu edredom de geada
teu dedo fora da luva
teu hoje antes da chuva
teu tanto de quase nada

teu veludo de fantoches
teu celofane de bala
teu teletipo de alga
teu escutador de rochas

teu chuvisco de domingo
teu lilás de gentileza
teu arrumador de mesa
teu canteiro de flamingos

teu menestrel ao relento
teu quase de quase tudo
teu criado surdo-mudo
teu anel de casamento


(*) poema do meu livro inédito "Anel postiço em merengue"(2005), no prelo da Anzol da Lua Editorial, Timbuktu, Mali.

Pobre Mundo



O nascimento do sobreviver,
A reconstrução mundial.
A destruição do imoral,
No mundo em que nada pode real ser.
Em meio à fome, dominação ao homem.
Manipulador sistema de segurança.
Objetivos frívolos, decodificados em códigos de barra.
Energia elétrica,
Mundo informatizado, submetido a cabos,
Energia paraplégica.
Mundo tão independente, um indesejável ente.
Um simples corte, que sorte...
fios de fantoches se arrebentam.
Tempo de incinerar a safra perdida.
Ou talvez, um simples intruso,
Acaba tendo conhecimento,
Acaba com o conhecimento.
_Que mundo é esse? Mundo biltre,
Repugnante, irritante, puro purgante...
Controlo o controle descontrolado;
Cansei, hoje, desse mundo!
Quero pegar uma caneta, comandá-la.
E ... estou aqui, fronte a um conjunto de teclas,
teclas que regem, aparentemente inanimadas;
Madrastas!
Esconder-se em uma caverna, a solução?
Caverna de Platão,
Caverna em Plutão,
inalcançável, então.
Acho que tudo isso já me infectou também!

25 novembro, 2005


Comprar uma vespa e sair por aí
* Da Clarissa também :-)

.



Tu bem sabes que esses traços, esparsos, são pra te prender junto a mim.
Porque o mesmo laço que te enlaça é o mesmo laço que nos põe fim.
* Post-sertanejo: desenho de Clarissa, frase minha.

E se pode viver sem sombras e sem amarras?
* P.S.: O post é da Clarissa - o login dela tá "faiando".

as canções que tocam dentro 7




Povo de Deus *
Alexandre Florez

Eis que nosso Deus
nunca foi branco
da cor da columba do espírito santo
mas de raça mestiça nascido dos hebreus.
Fala uma língua esquecida
que o povo compreende
é artista de circo, teatro mambembe
contador de histórias
pescador e artesão.
Nosso Deus é mulato e saiu de passista
destaque no asfalto, ele é malabarista
com trejeitos nagô e ginga de afoxés.
Não tem olhos azuis, não é caucasiano
é hindu é Mané é Vavá é cigano
é mestre Jacó tocando bandolim;
nosso Deus reparte o quanto tem
entre os vagabundos,
acolhe os desvalidos
toda escória do mundo
prefere os humildes
não se sabe porque.
Deixou as catedrais, foi morar
nas malocas
viver nas palafitas, nos barracos, nas choças
e entre a gente no morro
desapareceu...

(*) obra-prima desse brilhante compositor gaúcho, lá de Cachoeira do Sul, contemporâneo de nosotros. Seu primeiro disco Caminho dos Engenhos (Fumproarte, Porto Alegre, 2003), assim como o trabalho de Vinicius Todeschini comigo de parceiro (Arrebaldeação, Fumprocultura, Caxias do Sul, 2003) e o de Otávio Segala (Otávio Segala, Fumproarte, Porto Alegre, 2003) dialogam em becos, tranversais, linhas de trem e terrenos baldios, na geografia da nossa multifacetada e criativa música popular (ou impopular, como diz o Vinicius). Não consigo tirar o disco do Alexandre do aparelho.

24 novembro, 2005


O show do Vitor Ramil em Caxias foi o típico "quem foi, foi, quem não foi, perdeu". E perdeu muito. O cara entrou no palco às 23:50 e parou de tocar quando o relógio marcava 1:25h, com um direito de bis à capela, talvez pelo cansaço de segurar uma hora e meia tocando sozinho. O set list foi privilegiado pelos dois penúltimos discos lançados, Ramilonga - A Estética do Frio e Tambong, afora as óbvias e não menos belas Estrela, Estrela, Loucos de Cara e Joquim. Vitor não podia deixar de reclamar do som (o retorno para ele não estava bom, mas pra platéia isso passou em branco), mantendo a sempre ereta e charmosa postura pelotense. O público estava de tamanho bacana: pouca gente, sem aperto, sem desconforto - considerando o lugar inapropriado para apresentações acústicas.
A diversão ficou a cargo destas duas candidatas a blogueiras neste espaço. Quando o show se aproximava do fim eu e Clarissa Blade Runner nos entusiasmamos para que o barbudo cantasse "Clarisser", linda canção do 3º entre os sete CD´s do cara - A paixão de V segundo ele próprio. Gritar não pegava bem, apesar de fazê-lo do mesmo jeito.
Clarissa: - Camila, Camila... tu tem papel? Eu tenho muitas canetas e papel nenhum.
Camila: - Garçom, garçom, nos dá um guardanapo.
Ambas: - Nhé, ele nunca vai enxergar o guardanapo.
Camila: - Péraí que eu tenho algo.
Puxo a conta do meu celular e pego a última folha, com a listagem de ligações do mês de outubro. Clarissa saca uma caneta hidrocor preta e escreve bem grande CLARISSER. Enquanto ele canta o bis nós erguemos o papel alucinadamente. Nada. O show acaba.
Bem, o show acaba e vamos para a frente do palco, com umas cervejas a mais na cabeça.
Clarissa: - Vamos, vamos falar com ele?
Camila: - Vamos fazer um xixi e depois falar com ele...
Na volta do toalete, ao falarmos de conhecidos, eu digo:
- Sim, não tá me custando dizer um "te liga, formiga" pra figura.
Ao dizer isso, encontro uma ponta de fio de tomada, com o crossover completo. Acasos engraçados.
Camila: - E aí, vamos descer no camarim?
Clarissa: - Vamos!
As duas rolam por baixo das barras de segurança do palco, com a desenvoltura de quem não faz exercícios há 2 anos. Clarissa desce as escadas de caracol por primeiro e eu sigo atrás, correndo feito gazela. Na metade da descida da escada vemos o Vitor Ramil olhar pra cima com uma cara assustada. Eu páro por um segundo interminável e me dou conta de que estou de saia. De que estou de saia e um tanto pilequenta. Foi-se. Foi-se o dia em que Vitor me viu a fundo. Haha.
No mínimo, engraçado foi. Bastante. Ele nos diz, ainda meio atordoado: - Já vou subir gurias. Nisso a gente corre de volta para cima, às gargalhadas. Esperamos um pouco junto com uns 15 fãs sérios e compenetrados, rindo das gorditas querendo abraçá-lo. No ínterim aparece o amigo de um ex-namorado com uma conhecida e diz:
- E aí, tu nem sabe quem a Camila namorava...
Eu, mais do que depressa e alterada: - Não espalha, essas coisas não se contam! Pelamordedeus.
Só depois me toco que eles são parentes. O amigo e o ex. Bem, foi-se também.
Vitor adentra o salão, eu e Clarissa vamos furando a fila fingindo que dançamos ao som de Jorge Ben pra nos achegarmos por perto. Depois de quase todos o abraçarem, beijarem, pedirem autógrafos, nós entregamos a minha conta da Claro, dobrada A/C Vitor A Mil e dentro escrito, em cima de Clarisser: Nos deve uma conta e, em seguida, o nome da música. Abaixo, jura tanajura, os nossos endereços de e-mail, o link para minhas músicas no Trama e mais umas bobagens de fã bebum. A gente olha pra ele e diz: - Ó, uma conta pra ti. Ele diz: - Uma conta? O que querem que eu escreva nela? Nós: - Nada, é pra ti. Ele: - Posso levar. Nós: - Claro, claro... leva a conta da Claro. Ele meio sério, quase que ri. Falamos um pouco sobre o show, sobre o lugar e Clarissa fecha com chave de ouro, com caneta em punho, e diz a ele: - Posso fazer uma tatuagem em ti, Vitor? Ele diz: - Faz. Ela pega a caneta, puxa o braço dele e desenha umas flores um tanto abstratas no pulso dele. Ele, com cara de estranheza em meio àquilo tudo: - Tu és tatuadora? Ela: - Não. Ele: - Que desenho é esse? Ela: - Ah, isso é o que tu quiser.
Bem, ele terá muito tempo pra pensar no que é, pois ela o "tatuou" com uma caneta de retroprojetor, daquelas que tu tens de tomar uns 3 banhos até sair. Imaginamos ele no chuveiro, esfregando as mãos e dizendo: - Gurias filhas da puta.
Estávamos satisfeitas. Satisfeitas e com pouco dinheiro. E à pé. Estratégia de quem sai pros lugares sem carro: fomos pro lado de fora, perto da saída, pra analisarmos quem ia embora e se passasse algum conhecido, solicitar uma caroninha até o Centro. Passa um casal meio-amigo e damos a indireta: - Ô, vocês não querem rachar um táxi? - Ôpa, não, valeu, estamos de carro. E vão-se embora. Merda. Passa o músico caxiense simpático, sozinho, nos olhamos... ih, acho que não, pra ele não. Ninguém mais ia embora. Eis que surgem 3 fotógrafos adentrando num Gol. Bom, era nossa hora de marcar, antes de ficarmos no escanteio total: - Ô, vocês vão pro Centro? Os dois rapazes nos olham embasbacados, a moça diz: claro, entrem aí, sem grilos. Com esse trio bastante hilário, fomos ouvindo Pink Floyd até a 6ª Légua, pois fizeram questão de ver o açude da Clarissa. Entre muitas outras bizarrices na noite acabamos a mesma feito legítimos loucos de cara.

as canções que tocam dentro 6 - pós emoções in loco


Após o belo e imperdível show de Vitor Ramil na noite passada (breves comentários virão a seguir), não me saiu da mente uma canção que tinha de ser postada neste nosso espaço aqui. Esta se encontra no disco "Tambong", imperdível:

Espaço
Vitor Ramil

Quarto de não dormir
Sala de não estar
Porta de não abrir
Pátio de sufocar

Carta no corredor
Eu não vou nem pegar
A voz no gravador
Não quero escutar

A lua é um farol
O vento, um assobio
A foto é um out-door
Teu rosto em 3x4
Mostra que

Tudo
Na madrugada
Insiste em ficar
Já que existe
Tanto espaço em mim

Juro
Na luz do dia
Todas as coisas
Vão me perder
Como te perdi

* A imagem é de pintura do grande Andrew Newell Wyeth.

23 novembro, 2005

Peito Vazio ou Um microconto pra Cartola



"Eu sempre fui sincero e você sabe muito bem", ecoava nos versos da música que o vizinho debaixo escutava a todo volume. Talvez fosse vingança por ela ter ouvido os 3 CD´s d'O Grande Encontro a partir das onze da noite na quarta passada. Agora ria quando lembrava da Elba Ramalho se esganiçando no som do banheiro com "A todo mundo eu dou psiu, psiu, psiu, perguntando por meu bem" e os barulhos de vassourada no chão clamando pelo tal "psiu" de fato.

Mas Estela dava de ombros pra sinceridade. Queria umas mentiras, uns enganos fortuitos pra alimentar o seu buraco. Agora olhava pro telefone e encarava aquele Motorola como talvez nunca tivesse olhado para alguém a quem amou. Um olhar íntegro, inteiro, concentrado. Pensava em ligar, pegava o aparelho na mão, até digitava o 910... e depois desistia. Não que a essa altura o Norberto merecesse um carinho seu, mas pôxa, aquilo não ia passar enquanto via Tela Quente no 12. Tela Quente, pé frio, companhia alguma. Esse era o retrato da sala. É a tal da falta que a gente nunca percebe e então se faz. A falta da rusga que seja, do ruído, da gritaria porque ele tinha comprado Parmalat desnatado e ela gostava do semi.

Agora ela estava semi. Semi-entediada, semi-querida, semi-bonita. Nada era pleno e talvez isso fosse durar muito tempo. Uns meses, quem sabe. Mas é como diz o Chico, "pra onde vai o amor, depois que o amor acaba?". Uns meses, então, quem sabe, bastariam pra desaguar a tristeza, beber em outras companhias, alterar a consciência até se sentir apta a dançar algo da Ivete Sangalo enlouquecidamente ou chamar o pessoal pra ir no videokê do Casarão, cantar com as putas.

O videokê, bem sabe, a música, sempre a salvava, de uma forma ou de outra. Mesmo que ao final da noite, embargada de Polares com a turminha bipolar, entoasse Cartola bem alto, já quebrando os saltos da sandália:

// Procuro afogar no álcool
A tua lembrança
Mas noto que é ridícula
A minha vingança
Vou seguir os conselhos
De amigos
E garanto que não beberei
Nunca mais
E com o tempo
Essa imensa saudade que sinto
Se esvai //

gaveta de roubados 2

Ensaio sobre a riqueza (*)
Gabriel Silveira

Ela tinha uma gata que se chamava Amelie, como não poderia deixar de ser. E para ela os gramados eram sempre verdes, como não poderiam deixar de ser. O vento era frio, ou quente, sempre perfeito para a hora que viesse a bater. As flores eram sempre rosas, como não poderiam deixar de ser. A verdade era sempre inteira, como sempre previra ser. Ninguém era nem tão errado nem tão certo que uma conversa não pudesse ter. E tudo que tinha era dela, como o fizera ser. Sua casa era linda, e clara, e de ar refrescante, uma casa exatamente como ela sonhava ter. E amava muito, e todos os amores eram sinceros, como somente um amor pode ser. E quando morreu, pôde levar tudo que conquistara. Até a pequena Amelie, porque a amava.

(*) post sinceramente roubado daqui, com a devida autorização do autor, este rapaz o Gabriel.

gaveta de roubados 1

A intuição é a razão disfarçada de sentimento.*


(*) post roubado sinceramente daqui.

enquete

Por que Mugnol não foi à inauguração do Instituto Bruno Segalla?

1. porque choviam cânticos?
2. porque é sovina, e pagar achava que tinha?
3. porque é punk?
4. porque ficou escutando jazz-fusion em seu flat?
5. porque estava no shopping com seus amigos punks, incluindo o Frank?
6. porque estava desprevenido sem sua camiseta rasgadinha?
7. porque dormiu de chambre?
8. porque estava na Velha?
9. porque estava off-line?
10. porque seu amigo marcodemenezes o mandou plantar carnaúbas?

A resposta, evidentemente, é tampouco. Durma-se com uma provocação dessas. Chamar o outro de imperialista. Aonde isso vai dar. Não se metam que os dois estão brabos. Periga romperem. Sabe-se lá. Coisa séria. Será? Os primeiros a responder receberão tapas e maldições de graça. Uma graça, isso.

quatro e meia, um sabiá


Se o sono é raso, qualquer ruído leve provoca despertar imediato e insônia póstuma. E desde que entrou a primavera, o sabiá tem me acordado. Ele tem, no granito das quatro e meia, um canto transversal, minimalista, surreal. Corta a minha madrugada o sabiá com seu canto esotérico.
Esse o esoterismo fatal que o sabiá infunde aos olhos: ele é pelo não-visto, afinal estamos na cama e ele lá, no galhedo. Não é fênix, pomba, simorgh, águia ou grou. Como estes, no entanto, é a nossa alma: é o canto in-útil na madrugada, que nada vale, nada soma, nada tenta representar; é o poema que te provoca e te dá tontura, no teu zênite e no teu caixão futuro.
Por isso, não me importo: que sejas tu que me despertes, ó bicho do amanhã! Vai, sabiá, faz brilhar teu antidiscurso de ave sagrada no negror persistente das minhas quatro e meia!
Deixai as orquídeas sonolentas, as formigas sem sono, e a dona deste coração, deliciosa & delicada, a esticar as horas entre os lençóis.
Que posso eu contra o sabiá.

22 novembro, 2005

crônica de uma noite de verão



Quem não foi ontem à noitinha e não adentrou a noite grande na inauguração do Instituto Bruno Segalla perdeu um momento único da história social de Caxias: foi uma verdadeira confraternização dos contrários, uma vez que se faziam presentes pessoas das mais díspares colorações políticas. Tudo transcorrendo dentro dos marcos da civilidade. Perdeu também, quem não foi, o excelente coquetel da Bongustaio, o bom-humor e tranqüilidade dos garçons (que deram espetáculo) e o vinho da Oremus, que esse escriba aqui não conhecia, mas que foi aprovado pelas minhas papilas gustativas, meus neurônios e também porque não tive ressaca alguma hoje pela manhã. Tanto que estou aqui, na frente do pc. O ambiente preparado pelos conselheiros e colaboradores do Instituto era acolhedor e a música, colocada pelo dj Ivo, estava acima da média: Grace Jones, Gotan Project, U2, bossa nova e otras cosas buenas. Rimos muito com o Troian - que planeja excursão pra ver os chatos dos Stones em Buenos Aires - e sua performance de bardo inflamado e mequetrefe anos vinte. Estavam lá, por certo, Leon Tolstoi, meu parceiro parapsicanalista Baiô De Laión, as tradicionais rainha e princesas, o prefeito, o ex, os conselheiros do Instituto, alguns artistas, outros nem tanto. Dos daqui d'Os Pátios, só esse escriba - que é conselheiro - e nossa amiga e blogueira de primeira hora Mônica, a dentuça. Começou bem o Instituto, os ares de um verão sincero começam a soprar. Certeza de que o Bruno Segalla, sua arte maior e o que ele representa na história política e cultural da cidade, não serão esquecidos. Terminada a festa, fomos comportadíssimos pra casa, dançando boleros dentro do carro, enquanto Vera, Tina e Troian subiam a Andrade Neves, o Troian entoando um chorus ao melhor estilo Joe Cocker. Nada como um evento social na noite cálida. Só faltaram os punks.

21 novembro, 2005

Mais um exercício


Ele ouvia "Lígia" há mais de quarenta minutos no Repeat. Até mesmo João Gilberto já devia estar cansado de tudo aquilo. Mas algo teria de acalmá-lo depois de receber a conta de seu Vivo Pós com o valor de R$ 288,30. Duzentos e oitenta e oito reais com trinta centavos, porra! Nem na adolescência eu devo ter falado tanto, pensou ele. Mas na adolescência ele não tinha tanto o que falar mesmo.
Se pudesse voltar o tempo, teria lido mais Caio Fernando Abreu e menos Tio Patinhas, teria ouvido mais Piazzolla e menos Lobão. Mas, para tudo há tempo, diz-se, e pra não sentir o peso de desencaixe afirma com veemência que é um cara pós-moderno. Só assim, pra explicar tantas e díspares referências. O saco é que agora era um tempo de muito dizer, mas não queria alugar os quatro ou cinco bons amigos o tempo inteiro. Sabia que cansava aos outros, ainda mais pra contar e tentar analisar sua vida amorosa de cabo a rabo.
Não queria muito da vida, pensava ele. Ledo engano. A gente sempre espera e quer muito da vida, mesmo que não faça absolutamente nada para que algo aconteça. Mas que a gente quer, a gente quer - é fato. Talvez tivesse chegado a hora de seguir os conselhos de um próximo: "Te aquieta rapaz. Encontra uma mulher com quem ao menos tu não te sinta incomodado - se prazer não for o caso, assina a Zero Hora, faz o consórcio de um Gol. Te aquieta!".
Isso doía, mas ele sabia que talvez fosse chegar o dia em que tivesse de parar de sonhar em conhecer a Espanha e em Barcelona topar com o amor pra toda vida, e fosse obrigado a pensar que era tempo de realmente se aquietar. Ou não. Porque "Lígia" inspira tanto. Quem sabe o amor pra toda vida não está lá, sentadinho em algum dos Postos da Orla, esperando por ele num fim de tarde de quarta-feira?
Não teve dúvidas. Ia passar as férias no Rio. Beber chopes gelados em bares de Ipanema, até algo grande acontecer.

As canções que tocam dentro 5



Dia Branco

Se você vier
Pro que der e vier comigo
Eu te prometo o sol
Se hoje o sol sair
Ou a chuva
Se a chuva cair

Se você vier
Até onde a gente chegar
Numa praça na beira do mar
Um pedaço de qualquer lugar
Neste dia branco
Se branco ele for
Esse tanto, esse canto de amor

Se você quiser e vier
Pro que der e vier comigo
Se branco ele for
Esse canto, esse tanto,
Esse tão grande amor, grande amor
Se você quiser e vier
Pro que der e vier comigo
* Geraldo Azevedo é, pra mim, um gênio da raça. Simples, sem rodeios.
Estava lembrando de shows bacanas que vi na vida e recordei de quando o vi, com o violão impecável, uma mão de direita digna de craque. Aí lembrei de Dia Branco, parceria com o Renato Rocha, que tem de ser ouvida.
Pra quem não tem nada dele, ouça aqui.

seurat.


pra iniciar a semana.

18 novembro, 2005

um exemplo tampouco pequeno de por que este poeta admira Adília.


Eclesiastes*

"Seulete suy et seulete vueil estre
Seulete m'a mon doulx ami laissiee"
Christine De Pisan


Tempo de foder
tempo de não foder
saber gerir
os tempos
compor
saber estar sozinha
para saber estar contigo
e vice-versa
aqui estão as minhas contas
do que foi


(*)Adília Lopes, in "O peixe na água", 1993.

Este lugar não é teu, quase ouço.

Mas e eu?

Eu que quero ficar
Tomar banho de chuva
Me espraiar ao sol
Rolar na grama
Tomar suco
E manchar o lábio, meio cor de uva?

Eu que te adoro, que ardo
Moro o olho em ti e esqueço do fardo
Mas de repente te odeio, te mato
E te digo baixinho:

Deixa eu ficar,
Assim, só mais um pouquinho?

16 novembro, 2005

Frações de Palavras

Palavras delirantes que sussurram desta casa,

Nas fibras das paredes largas,

Permanecem anos guardados;

Transmitem desleais sentimentos,

Fogem delas instantes de solidão insolúveis em mim.

A tintura lascada, em que partes,

Com as minhas unhas, agora curtas, foste.

Marcas da insignificância de meus versos,

transmissores apáticos como meu sentimento revés.

Na grama escura e não aparada dos fundos,

O verde insiste em renascer, o verde;

Nem ele sabia que estava feio,

Nem ele sabia que as flores já estavam mortas,

Nem ele sabia que encobrira o meu caminho até o portão;

As frestas da janela fechada,

Filtram pensamentos inóspitos aos vizinhos,

Havia ainda vizinhos?

Se me fosse mostrada, a casa minha, não me aproximaria.

Murmúrios de liberdade sobressaem em noites de chuva,

Gotas d’água sufocantes,

Pontilhados que fizeram no chão – guias internos,

Internamente revestidas de ar puro e sentidos.

Sentidos que tornavam toda palavra à-toa;

Toda palavra insana em beleza, simplesmente;

Toda completa fração de palavra estava longe, a casa,

Não cabiam nela, as palavras.

ah o feriado.

nua vens
sem véus
ou nuvens

tábua riscada


as mãos de um vampiro

estão aqui
pousadas
sobre a tábua riscada
por mil anos

estão aqui
unhas e dedos trançados

estão aqui gentis e macias
como chuvas de escaninho

estão aqui nesse pescoço

anel postiço em merengue
fosso de nenúfares
veja só o senhor e a senhora

no fim das contas não passamos de carne viva

11 novembro, 2005

Circunstâncias Atemporais














Chuva de sempre,
Chuva nefasta.
Aquela que inunda as casas e as castas,
Aquela que é desgraça ou benção,
Aquela que interrompe ou une
Laços de família.
A mãe manca reclama;
O pai pálido se assenta;
As crianças cretinas imploram por atenção...
Discussões de um clã,
Tecem clandestinas formas de amar.
Pequenas claustrofobias em cada um,
Em cada dia de chuva.
Chove agora aqui,
Chove como sempre,
As intempéries (como imaginam),
a chuva não vai levar.

10 novembro, 2005

esse samba vai pro Stan Lee, pro compadre Anescar e pro Sérgio Sampaio.



samba do desencaixe


como a cordinha do brinquedo não encaixa
como a moeda não encaixa no cofrinho
como a caixa dentro doutra dentro doutra não encaixa
e não encaixa o bilboquê no seu furinho

como a macega não encaixa no ancinho
e couve-flor não se cria em apartamento
não encaixa esta face em meus espelhos
nem a mirada que se mira um só pouquinho

não encaixa essa sandália no asfalto
se não encaixa pavlov em meu lacan
as mãos queridas buscam névoa não alcançam
eis que a névoa não se encaixa na manhã

num desencaixe vai vagão por sobre o trilho
que sabe a mão do maquinista manejar
se num instante desencaixa o maquinista
vagão e trilho vão por fim desencaixar

como a mandrágora não se encaixa na salada
e salamandras não freqüentam serpentários
o cubo mágico não encaixa não encaixa
geladeira não conversa com armário

como a sandália não se encaixa no pezinho
nem o pistilo se encaixa ao gineceu
esse sorriso nessa boca não encaixa
e o rochedo não se encaixa em prometeu

quem sabe a flor que jaz mortífera no lodo
quem sabe a brisa suicida do crepúsculo
talvez a onda tombe funda lá na lua
talvez do todo edifique-se o escombro

se nos x-men não se encaixa o volverine
no peito o tolo não encaixa não encaixa
na caixa alta dos motivos mais mesquinhos
na caixa baixa dos destinos mais esconsos

09 novembro, 2005


Acabo de comprar o cd "Contos do Mar" do Mário Gil. Todas as letras são do Paulo César Pinheiro, belíssimo trabalho. Indico a todos que circulam nesses pátios...

as canções que tocam dentro 4*



Não Tenha Medo Não!
Sérgio Sampaio

Suje os pés na lama
E venha conversar comigo
Comigo
Chore, esqueça o drama
E venha aliviar
O amigo
Vem, não tenha medo
Não tenha medo
Não tenha medo, não
Vem, não tenha medo
Não tenha medo, não
Vem, não tenha medo
A barra está pesada
Vem, não tenha medo
A barra pode aliviar
As pessoas são uns lindos problemas
Eu posso até acreditar
Eu acho tudo isso uma grande piada
Ou então eu não posso achar
Não me espera pra beber seu veneno
E nem pra ver você chorar
Demoro o tempo que for necessário
Eu moro longe
Eu posso nem chegar
Demoro o tempo que for necessário
Eu moro longe
Eu posso não voltar
Demoro o tempo que for necessário
Eu moro longe
Eu pó...
* Título do post fazendo sequência às canções do amigo Marco, com pedido de licença.
Sérgio Sampaio, grande paixão musical. "As pessoas são uns lindos problemas" já mata a canção na boniteza.

08 novembro, 2005

letras miúdas


os girassóis que te prometi ontem
aquilo que te disse sobre as letras miúdas
todo meu carinho
e o cheiro de pátios delicados

- adri, essas poucas palavras porque meu amor é tanto.

valsa à guisa de resposta a Clarissa*



blade runner waltz

clarissa clarissa

brincas assim tão séria
andróide envolta em preguiça
o anjo dentro da fera
a asa do sonho atiça

bonecas fadas piratas
brincas assim - fustigas -
teu coração às estrelas
vênus sob a treliça

clarissa clarissa

(*) era uma brincadeira, e virou uma resposta poética à amiga Clarissa, que publicou o provocador poema "sim", aqui nestes pátios. não sei por que lembrei-me de Blade Runner. ela provocou, ela teve a resposta. ilustra esse postado o afresco "A dama e o unicórnio", do pintor italiano Domenichino, datado de 1602. quem viu o filme sabe o porquê do unicórnio.

O BONDE

Eu que nunca andei de bonde, tenho uma saudade imensurável dele ao escutar este choro canção de uma parceria inusitada de Sidney Miller, Sueli Costa e Maurício Tapajós.

morre no meio da praça
sem dono e sem graça
sem ter mais pra onde ou porque

já que esse bonde não passa
ninguém mais o espera
quem dera eu pudesse entender
vira brinquedo sem dono
que o próprio abandono
correndo no tempo desfaz
fora de linha e de moda
não passa, não corre, não leva mais
quem não quiser chorar
finja que vai partir
toma o lugar no bonde
não peça que ande
nem diga por onde seguir
lembre que só depois
quando chegar ao fim
mesmo sem brilho e sem glória
verá sua hisória contada assim
passa em seu passo tranqüilo e cansado
de quem já sabe de cor seu destino
para, suspira e prossegue
vai percorrendo rota de sua rotina
de sempre chegando ir partindo
por um caminho traçado no chão
cantando, contente, tim-dim-dim, tim-dim-dim
chega ao ponto final
vê companheiro confessa
que o bonde sem pressa
chegava depressa demais
quem não achava o dinheiro
saltava ligeiro, corria e pegava o de trás
guardo no meu pensamento
transformo em cantiga
momentos que foram tão meus
e hoje quem passa nem liga
nem pensa em dizer adeus

Sidney Miller foi um compositor que em sua curta obra, interrompida em 16/7/1980, teve a sensibilidade singular dos grandes poetas da música popular brasileira. A maneira como descrevia situações e personagens, de maneira poética, simples mas ao mesmo tempo complexas, faz com que o ouvinte experimente sensações que só a arte pode proporcionar. Como em sua estrada que “parece um cordão sem ponta, pelo chão desenrolado, rasgando tudo que encontra, a terra de lado a lado". Seu palhaço “que na vida já foi tudo, foi soldado, carpinteiro, seresteiro e vagabundo, sem juízo e sem juízo fez feliz a todo mundo, mas no fundo não sabia que em seu rosto coloria, todo encanto do sorriso que seu povo não sorria”.
Antes de morrer Sidney estava com um projeto de lançar um lp independente, que se chamaria Longo Circuito. Já havia escrito o fac-símile de parte da sinopse onde conta que “em 1967, no Rio de Janeiro, mais exatamente na rua Gustavo Sampaio (Leme), havia um bar, conhecido como Bar do Careca, freqüentado quase que exclusivamente por músicos. Uma espécie de ponto de encontro da geração que estava sendo (ou viriam a ser) revelada pelos festivais da época - exemplo Milton Nascimento, Gutenberg Guarabira, etc. Uma noite passando pela porta daquele bar uma pessoa me disse o seguinte : - tem uma moça lá dentro, que acabou de chegar de Juiz de Fora, e que está tomando cachaça e tocando no violão um chorinho que ela compôs no ônibus quando viajava pra cá. Entrei e vi pela primeira vez Sueli Costa. Ouvi o choro, me apresentei a ela e pedi permissão para fazer uma letra .Ela riu, falou baixinho alguma coisa que não entendi, mas percebi que havia consentido....nessa época algum projetor, do Rio, governador ou coisa que o valha, tinha decidido colocar os bondes, recém saídos de circulação, nas praças públicas, para recreação de crianças. Fiz então em cima que me deu a visão do meu transporte de colegial, transformado em brinquedo, a letra daquele choro. Um dia, pronta a música, Maurício Tapajós ouviu e disse - choro sem terceira parte não tem caráter - assim a parceria cresceu”.
Em 1983 foi lançado pela FUNARTE o lp intitulado simplesmente Sidney Miller, que foi uma espécie de continuação do projeto “Longo Circuito”, que graças a seus parceiros e amigos (entre eles o próprio Maurício Tapajós) pode, na medida do
possível, ser concretizado
.

Sidney Miller
18/4/1945 - 16/7/1980

podre?*


Mônica e Camila: vocês saberão o porquê da Rê Bordosa!
(*) com os devidos créditos ao genial Angeli

cabelos & pontas



balas berbau. meu vô de poncho. minha vó magrinha. meu outro vô careca. minha outra vó castelhana. pêssego-do-mato. carlos zéfiro. coleção de carteiras de cigarro. incêndio na destilaria. morte do pai do josué. o cheiro da fábrica de botões. escolinha espírita dos domingos. esporte clube uruguaiana. ruas de pedra. ruas de paralelepípedos. ruas de asfalto. ruas de asfalto derretendo. meu tênis novo com uma camada de asfalto duro. cacharel. cabelos&pontas. tarzan. odin. tannus. miss marvel. namor e os inumanos. romã. galaxie trio. o galaxie do tio. garrafas crush. a digoxina do vô. o minister do vô. cachorros lambendo veneno. chuva de abacates. sexus nexus plexus. pra não dizer que não falei de flores. coroa-de-cristo. autorama que não tive. colégio marista. colégio metodista. escola pública. escola da rua. pequena aristocracia decadente avec elegance. meu tio e o konktik. o fuca do pai. laika barão tôco cola-fina os cães todos. veneno para cães. creme rinse. ts eliot. teilhard de chardin. a ilha do tesouro. califórnia da canção. trago-fino 3 fazendas kicana as canhas todas. meu orgulho besta. minha raiva. minha primeira ficção. o guarda não vai gostar disso zé colméia. o tempo dos assassinos. cacaréu. tramandaí. o salso. pão com manteiga e açúcar. libres. obelisco. estátuas eqüestres. calças cáqui. pelegos. distintivo. revista placar. césar passarinho. bebeto alves. seu morocho. minhas primas. rua santana 1890. cohab nova. minha mãe cozinhando mondongo. eu levando um tombo. eu levando um choque. a correnteza me levando. ele&ela. tex. conan doyle. ferro carril 0 x inter 15. ferro carril 0 x grêmio 1. hemoptise. tv colorado. tapufe. seu aquiles. creme nívea. minuano limão. minha mãe cozinhando língua com ervilhas.

quem quiser que conte outra.

um escafandrista

abraço de sal,
submarino

e quando todas essas serras
forem ilhas?
Sebastopol? A Roca?
Vila Cristina?

todas as estradas em poeira
alimento para meros e marlins

dever de casa sempre lembrar
em toda parte o mar está

musas & deusas & loucas*

musas modernas caberiam na palma da mão

deusas hodiernas roeriam à luz de lampião

loucas etéreas pra castigo de toda paixão

não

musas serenas ririam de mim

deusas pequenas diriam que sim

loucas terrenas retornariam do fim

não

na minha mão só cabem migalhas

que só acendem fogos de palha

e tresandam o que o valha

não

musas deusas loucas

confusas chinesas roucas

deidades harpias pastoras

valem o quanto pesam

valem o quanto pensam

valem o quanto furtam

não

na minha mão não cabem helenas

lesbos tróias cartagenas

de um aquiles valgo

de um ulisses gago

na minha mão navegam falésias

na minha mão aderem macegas

de um perseu caído

de um orfeu mordido

por tebas tróias cartagenas

não

na minha mão não cabem ciganas

das casas pernambucanas


(*) poema publicado originalmente em livro algum, ano supostamente de 2003. virou letra - com modificações espertas (não publicadas aqui, por certo) - pela mão do meu parceiro Vinicius Todeschini (Bayo the lyon).

as canções que tocam dentro 3



Retrato Cantado

Quem me vê sentado
atrás dessa mesa de escriturário,
não vê o tarado, o louco, o sanguinário,
o bárbaro sem véu,
o estripador cruel.

Não me vê no convés
de um veleiro de três mastros
me guiando pelos astros
a caminho de Bornéu.

Não sabem que eu roubo
meninos na praça quando a tarde cai
e que os vespertinos já me apelidaram
de monstro assassino
do Parque Shangai...

Mas eles não sabem
que eu sou gigolô de beira de cais
que eu sou o autor do crime da mala
que eu larguei o trapézio por beber demais...

E nem imaginam
as atrocidades que vou cometer
Não desconfiam
que a causa de tudo
é não conseguir me esquecer de você

Eu não consegui
me esquecer de você...

(*) em um disco que só tem coisas geniais (Aldir Blanc, 50 anos - 1996), essa canção (de Márcio Proença e Aldir Blanc) me salta aos olhos. e segue tocando dentro da minha cabeça, desde que meu amigo Diogo me possibilitou ouvi-la, assim, de presente.

07 novembro, 2005



Vem a brincar no meu pátio
Traz tua bola, teu pião, tua pandorga
Me diz que te divertes
Que sou tua melhor companhia
Que picolés, algodões doces e bolachas Maria
Ainda hão de ser devorados por nós dois
Me diz que casas em árvore serão nossos projetos do futuro
Que bonecos de pano serão nossos filhos mais bonitos
Depois vai embora
A medida em que te chamam
No momento em que mais clamam
Tua presença em outro lar

04 novembro, 2005

Monsueto Menezes


Se vivo fosse, completaria hoje 81 anos o célebre sambista carioca Monsueto Menezes. Nascido na Gávea e criado no Morro do Pinto, Monsueto foi guardador de carros, tintureiro e baterista de diversas gafieiras e cabarés. Dele, em parceria com Arnaldo Passos, é "Mora na Filosofia", que ficou eternizada no disco "Transa", de Caetano em seu exílio londrino, cuja letra - uma pérola da música popular - reproduzimos abaixo:
Eu vou te dar a decisão
Botei na balança e você não pesou
Botei na peneira e você não passou
Mora na filosofia
Pra que rimar amor e dor
Se seu corpo ficasse marcado
Por lábios ou mãos carinhosas
Eu saberia, ora vai mulher,
A quantos você pertencia
Não vou me preocupar em ver
Seu caso não é de ver pra crer
Tá na cara
(*) Este blogue agradece carinhosamente ao Marcelo pela lembrança recolhida em seu blogue Pentimento.

Guinga...



Guinga, o homem da fronteira*

O homem é um monstro. Do bem. É, com licença de Edu Lobo e Milton Nascimento, o maior dos pós-jobinianos em atividade. Não fosse pelo próprio Tom Jobim, também seria o maior pós-pixinguiniano da atualidade. E como Tom, ele ama Villa Lobos, que amava Pixinguinha, que amaria Guinga, se o ouvisse. Sei lá, quem sabe até ouve.
Por incrível que pareça, nunca havia visto e ouvido Guinga ao vivo.
O lugar para esta inesquecível primeira vez não poderia ser mais adequado: o auditório do Instituto Moreira Salles, no alto da Gávea, com suas cento e poucas confortáveis poltronas ocupadas pelo público educado e discreto que ouviu Guinga em silêncio reverente para depois saudá-lo com aplausos selvagens. De bônus, as cortinas da parede lateral envidraçada foram levantadas para revelar o cenário do esplêndido jardim iluminado.
No palco, um dentista cinqüentão nascido no subúrbio, criado na Zona Norte e morador do Leblon há 20 anos. Ele e seu violão. E sua música assombrosa. Durante toda sua vida ele viveu essa estranha vida dupla, de dia arrancando dentes, fazendo restaurações e dando anestesias e À noite se transformando no solitário compositor e violonista que cria melodias e harmonias na fronteira entre o popular e o erudito e tem entre seus maiores admiradoras justamente os mais admirados músicos pós-jobinianos como Edu e Milton.
É exercício vão tentar catalogá-lo ou enquadrá-lo em escolas ou movimentos, é autodidata, avançou por trilhas musicais que se misturam aos caminhos de Tom Jobim, Pixinguinha e Villa-Lobos, é a fronteira viva entre o clássico e o popular, entre o jazzístico internacional e o melhor samba, choro e canção brasileiros.
O homem é um monstro. Um doce monstro, no início nervoso e desconfortável no palco, ansioso para mostrar a sua música, seu dom, sua razão de viver. No final, cercado de aplausos e grata admiração da platéia, chegou a contar piadas. Um homem adorável em sua fragilidade e na extraordinária força de sua arte, na sua reverente admiração pelos mestres, no seu respeito aos colegas e ao público. E as músicas?
Começou com duas instrumentais intrincadas e cheias de sutilezas e surpresas. Depois chamou o magnífico trompetista Jessé Sadok e, juntos, em perfeita integração, tocaram uma série de blues, choros, sambas, canções, ou misturas de tudo isso, que maravilharam o público. Não, não se parecem com nada essas canções, são modelos originais na vertente da mais refinada e sofisticada do que se tornou conhecido como MPB. Não dá para falar, só ouvindo.

(*)Matéria publicada no site "Sintonia Fina", de autoria do compositor Nelson Motta. Ilustra este postado foto de Roberto Cifarelli, fotógrafo luminoso do mundo musical.

o charco, ainda.


Charco, pintura de Modesto García, pintor de Cuba

dez e um pouco

o sol não cai mas a gente fala que cai, sobre as ruas, sobre os carros, sobre a cara das pessoas, os corações, sobre os claros olhos, sobre a perna sincera do aleijado que rasteja na vinte de setembro essa hora, dez e um pouco, sobre esse relógio impossível que é o dia na cidade, sobre o ódio que late feito cérbero, sobre caronte adormecido, sobre a foto de infância que repousa na gaveta, sobre as pastagens do bonito, sobre a carne. o sol feito um chato querendo te acordar às sete e quinze, o sol alumiando a charneca em flor, o charco sorridente, o pasto assoviante, as gavinhas translúcidas da manhã botânica do mundo. ah o sol, um charque. sol de brasa fria, sol dos sedentários, sol das cadernetas e das compotas. ah sol sobre as lajotas, sobre os gerânios, sobre os velames, sobre os iliotes. sol que na minha janela oscila feito um cetim levíssimo, um galeão de ouro. sol feito um chato querendo te acordar no melhor do sono tampouco. o sol não cai mas a gente fala que cai.

bom dia.
amanhã chove será.

meu tio*


meu tio
que enfiado em sintéticas botas
caçava o nada na charneca.

meu tio que adentrava
na biblioteca
os pés embarrados
em busca do livro
sem fim.

lá ia meu tio
no pasto amarelo
com seus perdigueiros
pegar pelas asas
a ave invisível.

levava no bolso
rosáceos cartuchos
charutos molhados
analgésico ácido
lá ia meu tio.

de camisa amarela
crocodilo no peito
aros grossos na face.

um pedaço partido
do Ulisses
perdido em seu bolso.

(*) Marco de Menezes, Pés de Aragem, 2005, inédito. Poema para meu tio Álvaro Goulart de Menezes, já em outras paragens caçando sua perdiz predileta. Graças a ele adentrei no universo mortífero e maravilhoso da literatura, com cheiro de pólvora, paisagens de rio entardecendo y la sangre en mis manos. A pedidos de minha mãe, que não o leu, publico aqui essa lembrancinha. Vem ilustrado este postado pelo mestre M.C. Escher.

03 novembro, 2005

Minha poesia é o que há de mais cru em mim.


Perdõem-me

O que se sabe tarde.

Corri à margem,
margem distante dos homens.
Bati à porta,
à espera de alguém.
O alguém se foi
em doçura converte o próprio horror.*
O gozo,
Solidão
Ainda me resta, pouco,
nas pseudo-veias-grossas,
algo que pulsa.
Pulsátil vibra e derrama,
uma água de nascente humana,
densa como lama.
Se ao menos jorrasse,
Deixaria de morrer aqui.


*Carlos Drummond de Andrade

01 novembro, 2005

Quando o amor vacila


Piegas? Talvez.
Mania de mãos. Sempre.
Trechos de "Quando o amor vacila", de autoria anônima - poema recitado pela Maria Bethânia no show Maricotinha.

o eterno o átimo o leve *


amor eu que quero com flores e ócio

amor eu refino pulsatilla e phosphorus

amor eu que quero compartir minha mesa

amor que eu quero cultivar gentilezas

amor que eu quero em almofadas e neve

que eu quero o eterno o átimo o leve

amor eu destilo e calo o perfume

que emana sutil do amor do teu lume

amor te preciso para as vinte e uma

amor te visito na Alfredo sem brumas

amor te envio este anel e este dedo

amor te ofereço cem bocas com beijos

amor te deliro com unhas e zelo

minha pele de água, tua pele de pêssego

amor eu te quero aqui dentro agora

e aqui fora eu te quero com todos teus dentes

amor vem agora sem pressa demora

que esses versos possessos eu faço somente

por tua beleza e contentamento


(*) atendendo a inúmeros pedidos meus, publico aqui esse poema inédito do meu livro igualmente inédito "Pés de aragem" (2005). Esse é pra Adri.


pós-concreto neobossa

a namor ada n ada n a ond a do m ar