Poucas situações mexem mais com a sensibilidade e com o corpo de alguém fora de sua terra-natal do que retornar de vez em quando a ela, como diz Stevenson na página de abertura de seu grande livro "O Morgado de Ballantrae". E isto pode ser feito tanto de modo in vivo (no meu caso pegando o Planalto em Porto Alegre e chegando na fronteira dez horas após), quanto pela escrita (que, em todo caso, também não deixa de ser in vivo) fazendo com que, no mais das coisas, a pessoa nunca tenha saído de lá. Eu, que sou do time dos reincidentes, não sei como dirigir-me ao mundo sem que irrompa com sua claridade o pampa, o suave tremor da miragem no horizonte, o destemor de espelho que é o rio na Uruguaiana da minha memória esburacada. Talvez isto pareça enfadonho ao leitor e ele pare por aqui. Mas talvez continue, uma vez que nada disso se faz sem ele, e não se trata de exercício de auto-elogio ou autocomiseração.
Então, o leitor continuando a sondar o que vai sendo contado, descobrirá que em certo dia de agosto do ano da graça de 1977 (data em que a indesejada das gentes levou o avô deste que lhe fala), uma carroça vem descendo a rua Santana, malemolente, com uma carga indecifrável de caixas de talco Pom-Pom. Um bando de meninos de canela fina está na esquina, ruidoso, a trocar figurinhas e a jogar tapufe. Muitas daquelas figurinhas, das bolitas escondidas em bolsos secretos, dos piões e piorras, muitas daquelas revistinhas que carregam - "O Pato Donald", "Heróis da TV", "Tex" - foram conseguidas graças à grande arte de dilapidar o patrimônio de garrafas de seus pais e vendê-lo em armazéns das proximidades, como os mendigos ribeirinhos trocam ossos por comida.
Saberá igualmente o leitor que ainda não tiver perdido as estribeiras da boa vontade, que, heróico em um pala marrom-alpiste, o senhor Aquiles vai agora até a varanda, onde senta-se a sorver o mate. Os guris na esquina da casa amarela estão a olhar, as vistas grudentas de ramela e sonho, o carroceiro sonolento que prossegue rumo à baixada da beira do rio.
Se o leitor quiser, enquanto recolhe o pára-quedas e habitua-se ao local, poderá observar que a carroça dobra a esquina lá embaixo, no mesmo instante em que um tristemente balouçante ônibus da Eutra linha 24 de maio está prestes a passar. Não há ninguém por perto, ninguém está à janela, ninguém ralha com o cusco nesta hora. Só o senhor Aquiles em seu pala grego, só os quatro ou cinco gurizotes. Um baque seco e foi-se ao chão uma das caixas. O ônibus já está lá perto do Açougue Sete e não pára, porque a parada está vazia. O carroceiro segue sem perceber, tentando reacender o palheiro. A gurizada, depois de algum silêncio, corre até a caixa e, com mãos ansiosas, a abre ao mundo: duas dúzias de tubos de talco Pom-Pom irão abastecer a quadra por uns bons meses. O senhor Aquiles está na segunda cuia e vai até a mureta para saber o porquê do acréscimo de balbúrdia, e vê os guris com branco da face às canelas. Meu pai estaciona o Fusca e me dirá que o vô morreu, e o leitor nestas alturas já deve ter virado (ou fechado) esta página.
(*) publicado originalmente em agosto de 2000, jornal Folha do Sul, por este metido-a-cronista aqui.
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