Às vezes é poesia*
Chove. É verão e chove uma chuva fina. Daquelas sem fim. Chove, mas a janela continua aberta. Entra uma brisa fria e silenciosa. A cortina dança. Balança suavemente e acompanha a métrica dos versos de Chico Buarque. Do outro lado da rua uma menina corre no pátio. A menina de vestido branco e fita no cabelo pula amarelinha. Nem se importa com a chuva.
Quem se importa é a mãe que grita com a filha. Não ouço porque o Chico ainda canta na vitrola. Vejo as mãos ligeiras e nervosas da mãe rompendo o andamento suave da chuva. A menina baixa os olhos. Parece procurar a pedrinha que se perdeu na confusão. A pedrinha que até poucos instantes marcava o seu sorriso. Não vi se a menina chorou. Acho que não. Aos seis anos as crianças já aprenderam que não adianta brigar com aqueles que têm o coração endurecido pelo tempo.
Distraído com o desencanto da menina nem percebi a chuva cessar. Voltei a olhar para dentro da sala da minha casa - aliás, da minha nova casa - e vi pilhas de livros no chão. Pilhas de poesia sustentadas por pilhas de prosa curta e voraz de onde despencam biografias de narcisos esquecidos. Preferi deixar tudo assim, empoeirado. É preciso, antes de mais nada, realimentar a vitrola. Minha esperança era rever a menina.
Mas a menina não veio. Aliás, nunca mais a vi naquele pátio. Dias depois nenhuma janela da casa se abria. Um dia caminhando por ali, na volta da padaria, vi o portão entreaberto. Receoso, olhei para os lados. Era manhã de um domingo cinzento. A rua vazia. Entrei. O pátio estava cheia de folhas secas de outono. Alguns passos adiante percebi uma marca no chão.
Espalhei as folhas e vi rabiscos trêmulos de um jogo de amarelinha. Nem o sermão da mãe apagou o traçado da brincadeira de menina. Olhei com mais atenção e vi uma pedrinha. Guardei-a no bolso e desejei à menina toda sorte do mundo. Porque a minha felicidade está bem encaminhada. Ainda mais agora, que recuperei a pedra perdida da minha história. No meio do caminho há sempre uma pedra. Mas nem sempre ela é estorvo. Às vezes é poesia.
(*) texto acima: colaboração luxuosa do nosso querido correspondente de guerra Mugnolini, direto das trincheiras sinuosas dos lençóis de seu leito de acamado. desejamos melhora ao nobre amigo, tão eivado de agridoces sortilégios e antitérmicos antitédio. bom retorno ao planeta. câmbio.
2 comentários:
e então, meu caro, obrigado pelo espaço. o meu pátio coube tão bem no teu.
novas notícias: estou quase livre da peste. estou quase 100%. quase livre dos remédios. se der tempo passo ainda hoje no Arco da Velha rever o amigo.
abraços
Marco
mugnolini, bravo amigo convalescente!
volte sempre aqui!
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