30 dezembro, 2005

ano novo, velhas certezas

- Não dêem cachaça pro Diógenes! - disse meu pai lá pelas tantas, noite passada.


Jean Leon Gerome, Diogenes, 1860

28 dezembro, 2005

Todo dia


Everyday

The Lama sat in bed
With bamboo backscratcher
His false teeth
in a big Glass of water
On the sunny windowsill

Todo dia

O Lama sentado na cama
Com um bambu coça as costas
Sua dentadura postiça
em um grande copo d´água
Está sobre a ensolarada soleira

*
Allen Ginsberg / Cosmopolitan Greetings (transcrição/tradução : Augusto Nesi)

Letras*


A palavra denegrida

A palavra posta de lado

O poeta tem de estar ao lado dela

Abrigá-la no poema

Com o animal, o louco, a mulher, a criança abandonados

Aquilo que a humanidade despreza

E chama de lixo

A palavra também não é poupada

Desse grande homicídio

Pobre palavra

vem

pousa

aqui no meu braço

Meus ouvidos

estão atentos as tuas letras

(*) mais uma colaboração exclusiva do nosso querido Odegar Junior Petry!
Fim de ano ninguém comenta nada. Só olha, que coisa. Mas 700 visitas em mais ou menos 15 dias já nos deixa mais que sorridentes. Aumenta nosso compromisso em continuar soprando essa brasa. Gracias a todos, e aos outros, os que não pisaram ainda por aqui. Como haveria dito Valéry:
Que seria de nós sem o auxílio das coisas que não existem?

27 dezembro, 2005

das palavras que me arrebatam 2*


Pequenas Epifanias
Caio Fernando Abreu, Estadão, 22/04/1986.

Há alguns dias, Deus - ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus - enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.
Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer - eu já estava lá dentro. E estar lá dentro daquilo era bom. Não me entenda mal - não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida".
Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziaram para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos. Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa.
Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas.
Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector - Tentação - na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível." Cito de cabeça, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada no degrau às três da tarde, com um cão bassê também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E, nada acontece.
De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou - descuidado, também - em pequenas epifanias - Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias, encravadas no dia-a-dia.
Era isso - aquela outra vida inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nesses dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém mais veria.
Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso também tocar em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que recomponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.
* seguindo as coisas que nos invadem, este é, sem dúvida, meu conto preferido do Caio Fernando Abreu. Há tempos leio e releio isso. Agora compartilho com os queridos do pátio de cá / Imagem do gênio E. Hopper.

das palavras que me arrebatam 1*


Céu embaixo
Paulo Leminski, do livro Gozo Fabuloso

17
Janelas, escancaradas janelas do 17º andar, aqui vou eu, aqui vai toda essa minha estúpida vontade de apagar a luz, única maneira decente de apagar a dor.

16
Décimo sexto andar. Até aqui, tudo bem. A temperatura está a 17 graus, o céu azul, e a lei da gravidade continua funcionando com o costumeiro rigor. Quem partiu, tem que chegar.

15
Ao passar pelo 15º andar, já não acho mais que quem partiu tem que. Está provado que é possível, em certos casos, partir sem chegar a. Nesses casos, se diz, houve empate. Eu não jogava pelo empate. Jogava pelo escândalo, vitória ou derrota. Foi vitória? Derrota? Tem gente que prefere abrir o gás. Tem quem se dedique à pesca submarina. Em nenhum desses casos, o fim é algo de último, a meta não é definitiva. Qual era o jogo dela? Fosse qual fosse, amigos, amigos, jogos à parte.

14
Só quem já caiu de um 1º andar pode imaginar o que senti quando. Quando foi mesmo? Será que foi? Ou foi um peso que tirei de cima de mim? Peso por peso, prefiro o meu, que, pelo menos, me leva para algum lugar.

13
Pronto. Treze é meu número de azar favorito. Tenho outros números de azar. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, por exemplo, essas coisas, enfim, que atravessam as réguas de cálculo. De todos, 13 é o meu predileto. Que foi que fiz para merecer cair até o 13º andar, donde se descortina um relance do Atlântico? Quem sabe eu não devia ter, vocês sabem. Vai ver, aquela nuvem lá longe não passa de um eco de um pensamento meu. A raiva é sábia.

12
Alguma coisa não pára de me dizer, não devia ter vindo. Eu sabia que a comida era péssima, o atendimento sempre ficava a desejar. Mas, depois de vindo, como desvir? O 12º é sempre o mais filosófico. Aquele onde o ato de pensar fica mais ridiculamente genérico. Cair não é genérico. Cair é a coisa mais natural do mundo. Cair é lógico. Podem perguntar para qualquer pedra do planeta Terra.

11
O 11º andar é sempre um caso à parte. Talvez melhor dissessem um caos à parte. Mas isto não seria correto. O correto consiste em dizer: o 13º andar, donde se descortina um relance do Atlântico, sim, o mais correto, é deixar cair.

10
Não sei como suporto esta situação. º absolutamente ridículo. Só porque alguém saltou do 17º andar de um edifício não quer dizer necessariamente que tenha que chegar até um, digamos, décimo andar. O décimo andar, em casos de queda, é objeto e motivo de lendas e chacotas entre muitos povos primitivos que, absorvidos por outros afazeres mais prementes, deixaram-nas cair no esquecimento, onde jazem até hoje. Mas jazem muito 'bem. As lendas 50bre o décimo andar, ainda vai haver quem as conte. Palavra de honra.

9
Que frio. Bem que minha mãe falou, leva um casaco. Sempre assim. A cabeça não pensa, o corpo é que sofre. O que eu queria mesmo era ficar para sempre nó 12º andar.

8
Ela, ela mora no 12º andar. Ao passar, quase dei um alô. Ela não entenderia. Telefonaria para a mãe. Fritaria um ovo. No máximo, olharia para baixo. Ou para cima, para ver de onde eu tinha vindo.

7
Parece mentira, mas cheguei ao 7º andar. A que ponto chegamos! Nessa velocidade, a lembrança do 12º andar parece apenas uma lembrança. A física ensina que os corpos têm sua queda acelerada à medida que se aproximam do destino. Não vejo por que deveria ser diferente comigo. A lei da gravidade é a mais democrática de todas. Rege, com idêntico rigor, gregos e troianos, jóias e paralelepípedos, impérios e pétalas de magnólia. Sete é conta de mentiroso. Ela me mentiu. Nada mais fácil que mentir que se ama alguém. Basta dizer: eu te amo. Quem vai saber? Como medir? Como provar? As palavras também estão sujeitas à lei da gravidade?

6
No sexto, fica a administração. É o andar mais frio e mais distante. É onde se tramam as grandes negociações, onde ficam os cofres com os segredos indecifráveis. Chegar ao sexto andar é a ambição de todo corpo que cai. Os que não. A poucos é dada essa proeza. Os que fracassam, fatalmente, continuarão caindo até o quinto, onde ficam os infernos.

5
Do antigo inferno, o moderno só traz o nome. Na verdade, o inferno de hoje, no quinto andar, é um dos andares mais agradáveis do edifício, dispondo de amplas instalações, sala, cozinha, banheiro, área de serviço e quarto de empregada. Os banheiros são revestidos de material à prova de fogo, precaução inútil, já que neste prédio raramente ocorre algum incêndio de proporções catastróficas. Da janela do quinto andar, avista-se o letreiro que diz, PROIBIDO CAIR.

4
Ninguém nunca soube para que servia o quarto andar. Sempre se imaginou que era uma espécie de depósito onde se guardavam as coisas que não serviam mais para os andares de cima, garrafas vazias, móveis usados, lâmpadas queimadas, livros já lidos, óculos quebrados, espelhos, diários, relógios.

3
Deus queira que esta saudade do 12º permaneça acesa durante todo este andar, durante o frio, o vento, a angústia, a raiva e a força maior deste poder que me chama.

2
Não há muito a dizer, nunca há. Meia dúzia de palavras resolvem problemas de mil anos atrás. Fomos nos dizendo cada vez menos Dizer sempre é uma outra coisa.

1
O chão é duro.
* E eis aí algo do Leminski que recém fui apresentada e me tomou de tal maneira que tive de postar aqui. Obrigada, Léo.

Lifa Librata



Três vanguardas antes de morrer-se, confiando seu buldogue [culturado e amarelecido há antros e antros], revisionava com os óleos semicortados o sulco e o cardo do animbo, diagnauseando e plurificando cada epêmera e cada alfimetade de sua lifa librata.
Entremás, a lifa que minuía-lhe e o selênio das únimas vanguardas que apretava-lhe dóreles no estreito, nem seus grilos nem seus mumurros arcavam a ser olvidos pelos lembreantes que por ali estrebavam-se a lembrear os líbreos do animbo.
Nem sua algêmea, sua namoralga epírita, faixo irisdescente que o afazia lifar anté as mais pélvidas e árias vanguardas, ou os púnicos deveredes que uma lifa de citadóido embreta. Nem mésimo ela nesse momênvito únimo e lúmino que era morrer-se entrelíbreo e literante, fagociclista da vanguarda adjacempre, espadachina loico enkardecido pelo palawordário dos eneódios que iam e zinham, com espádulas, a arcar-lhe persas e medos.
E mitou-se no espalho do animbo: riu seus buldogues e sua borca ostiante, revisionou os óleos com os óleos, aí mitou as ouvelhas nem grades nem pequenenas, o cabélico a despentagramar-se sêmplem nesse antro refém-comedido.
Uma loica e trieste lífada espartou-lhe pela escarface. O espalho crackou-lhe a mitagem. Era o momênvito finálend, a vanguarda absolúdica, o delivaneio minuindo-se da línima mírica à mátima máscada. O espalho no sólido, num cráckido. [A algêmea, nem mésimo ela].
Só os lembreantres a se estrebar no animbo e o selênio muto do afindo.

(Publicado após 15 anos, 10 meses e 24 dias em rascunho. Ilustração: Moebius)

26 dezembro, 2005

۞ Os corredores verdes*













۞ prólogo ۞

Os passos, provindos de seis pés distintos, reboam no longo corredor de cerâmica verde esmaecida. Já ali na entrada do corredor o som dos passos é ouvido como se viesse de longe, talvez do final do corredor, mas na verdade é o contrário que ocorre. É uma criança que vai por último, uns oito ou nove anos, um homem adulto recém-banhado e cheirando a sabonete Phebo segue entre a criança e um ancião que os guia.

É um caminho longo, este corredor, um caminho que iniciou há um ano atrás aqui mesmo nesta escola de padres maristas. Pelo menos é o que parece agora ao menino, desde que avistou a primeira vez aquele homem que neste momento não é mais que mero fantasma a se esbater nos corredores verdes de sua lembrança. Nos corredores desta escola gigantesca, onde o menino estudará daqui a alguns anos, quando já não será mais um menininho troteador de sandálias gastas, tímido e terno, e se lhe assomará a interminável adolescência que ainda hoje corrompe soberbamente o adulto que pensa lembrar desta história sobre este homem desaparecido e estranho, sobre este homem incomum que, na penumbra amarronzada do amanhecer na campanha, sumiu e sabe lá diabos onde está agora, com nada a não ser o seu mistério gravado como uma tatuagem indelével em uma parte do corpo que ele não pode olhar, ele nem ninguém, e com umas calças de tergal, uma camisa com desbotada estamparia floral, um par de sapatos mocassim roto sobre os pés nus.

Pronto, chegaram. O padre-ancião abre a porta velha, mas pintada há pouco tempo, daquele tom púrpuro profundo comum aos sóbrios colégios maristas. E aquela jornada que começou há um ano atrás - uma atmosfera mortífera que exala agora mais forte quando um ventinho vindo da beira do rio Uruguai entra junto com aqueles três visitantes - parece longe de acabar.


(*) inicio aqui tentativa de folhetim. não arreparem.

O Homem que come

- Era homem !
- Era mulher !
- Era homem tenho certeza.
- Era mulher, eu acho !
- Imagina, isso lá é traço de mulher, veja as curvas, a textura, a utilização de cores, a forma, a temática, era homem eu garanto.
- Mas eu tenho certeza que era mulher.
- Era homem, vai por mim, disso eu entendo.
- Não é possível, sempre achei que fosse mulher.
- Veja bem Frida Khalo, observe a instância, o empenho, a força cronológica do trabalho de Frida Khalo, aquilo sim é traço de mulher, enérgico na forma porém frágil em significados, agressivo no tema mas sensível na interpretação.
- Hum ! É verdade, sempre achei que Frida Khalo fosse um homem, aquele bigodinho indecente deixa dúvidas...
- Então, estou lhe dizendo que entendo disso e aqui estamos diante de um original raríssimo do Tarsila do Amaral, contemple-o.
- Tarsila?
- Sim, Tarsila.
- Mas Tarsila é nome de mulher.
- Mas isso não tem importância, Sofonisba é nome de mulher?
- Sofonisba ? Humm...acho que não que que é isso ?
- Sofonisba Anguissola é uma grande pintora, nasceu em Cremona, na Itália por volta de 1530 se não me falha a memória, era pintora renascentista especializou-se em retratos.
- Você entende mesmo de arte hein?
- Já lhe falei, disso eu entendo, Tarsila era homem.
- Mas não é possível.
- E “de Lempicka” você conhece?
- Não quem é ele?
- VIu, Ela ! Era uma grande pintora.
- Ela?
- Sim ela. Tamara de Lempicka, Polonesa uma dais maiores expoentes da Art Deco.
- Não é possível?
- Você precisa ler mais rapaz.
- É você tem razão. Mas eu jurava que Tarsila era nome de mulher. Ouvi dizer inclusive que teve um caso com um tal de Oswald.
- Equívoco seu. Veja bem este quadro, o Abaporu de 1928, olhe as formas feéricas, observe a subliminaridade de objetos de natureza fálica, esse cactus por exemplo, e tem mais, sabe o que quer dizer “Abaporu”?
- Não, não sei.
- “O Homem que come” vem do tupi-guarani.
- Jura?
- Sem sombra de dúvida. Agora me responda, uma mulher faria uma quadro com esse nome, com essas formas, com essas cores em 1928?
- É verdade você tem razão.
- A vida é assim meu jovem, cheia de enganos. Venha lhe pago um café.



minarete*


eu só quero duas coisas
amor e silêncio
fogos de festim facas de ternura

eu só quero duas coisas

amor e silêncio
e já são várias as coisas que desejo

a chama do minarete
de uma agora Istambul futura

o cheiro do teu destino
uma lua de petúnias
com que cobrir-te de beijos

(*) in: Anel postiço em merengue (inédito, 2005, Edições Pórco Júpiter, bairro de Lourdes, os Correios fecham aos sábados)

Poemeto do C

CatadorEncabulado
CaminhanteCadela
CafajesteCacilda
Carnecrua&Alcaparras

Cace sua caça

O (des)Caso da Vida




Quis fazer de cordas
Um cordão de couro macio
Durante dias fiz apenas nós
Durante dias você deixara de ser vazio
Durante dias pensei em nós
Agora desconheço as horas.

23 dezembro, 2005

Dentro dos Sonhos

Dentro dos sonhos
Que tu sonhaste
Vaguei só

Pronto pra encarnar
O amante sereno
Um louco obsceno
Ou aquele que você sonhou
Me diz que vou
Ser o que for
Palhaço,
Eterno trovador
Me diz pra que
Possa te dar

Velhos poemas,
Te embalar
Com canções de ninar
Ou solos de jazz




Me conduziste
Dentro dos sonhos
Vaguei só
Pra te encontrar
Noite de lua
Vejo que a tua
Figura
Quer me intimidar
Com rendas de lá
Do Ceará
Renascença a enfeitar
Decotes que são
Imãs pra minha visão
E o jeito deste teu olhar

Parece me convidar
Pras promessas no altar
Dentro dos sonhos
Que tu sonhaste

Vaguei só
Pra te encontrar
Noite
Que lua!

Sinto que a tua
Estirpe
Quer me torturar
Discutir Godard
Velas no jantar
Paul Sartre a me ofuscar
Talheres que vão
Confundir minhas mãos
Das taças qual devo usar?
Já penso até em voltar
Pro meu velho bar...

meu indulto de natal
chegou calmo e tão sereno
veio em paz, todo moreno
desses presentes que não se pede,
presentes que acontecem


meu indulto de natal
sabe bem de seu papel
só tem medo do embrulho
tem receio é do volume
do amor que eu posso dar
* imagem do gênio do olhar, cartier bresson

poema-pernoite para diego*


7 anisetes vais achar na tempestade
4 conhaques abissais de quando em vez
que seja alegre teu valverde y teu mate
que assim seja teu martini teu xerez

vai como um coxo macilento pelas ruas
vai, com tu sotaque de maldito
vai pro rei dos polvos sem tus miedos
vai, com tua horda de proscritos

vai, sangra tua sanha bombonera
enverga azul dourado Cebollitos
engendra balãozinhos nos zagueiros
com travas de chuteira e absinto

liquida lôco lentamente com o malte
mesmo que a merca já não chegue ao fim do mês
antes te prenda a moçoila liberdade
e singres teu palustre num xadrez

(um olho negro em fidel outro em guevara
e ainda outro no cartel dos escobares)
dança dieguito el eterno abstêmio
teu tango flaco entre a miséria y la nike


(*) en malo portuñol, esse torcedor do Boca aqui. Maradona não amo nem odeio: amo y odeio.

chavela/florbela*

breve poema édipo para chavela

te deixa vê-la nela
concha madre
de mi nácar sê-la



breve poema lésbico para florbela

ai florbela vai
espanca minha flor
na flor dela ai ai


(*) in: Anel postiço em merengue (inédito, 2005, Edições Pórco Júpiter, bairro Lourdes, azulzinho deixa na frente)

formidável*



ao irritado nunca um disco de coltrane

nada falar em lunfardo à balconista

nada de pouco palavrório ao porteiro

nunca um óleo de terceira ao vigarista


não auferir carne viva ao apressado

ou uma ponte elevadiça a quem tem toc

uma cartela de bingo ao gago estrábico

uma paisagem naïf ao galgo esnobe


nunca a palavra formidável às vanguardas

nem um ensaio de montaigne ao maoísta

não almofadas confortáveis para a bunda

dos paus-de-arara de simão o estilita


(*) in: Anel postiço em merengue (inédito, 2005, Edições Pórco Júpiter, bairro de Lourdes, agência dos Correios embaixo)

21 dezembro, 2005

balada com brócoli para Tony Iommi*



Fila do bifê no Rivadavia's, guri cabeludo com camiseta do Korn me olhando de revesgueio:
- Dá licença.
Deixei ele passar, suado o animal, colando. Se serviu de saladas praticamente, nem grelhado. Depois subiu pela escadinha até o mezzanino, sentou, pediu um suco praquele güeco baixinho, meio alemão. Ficou olhando absorto enquanto comia. Absorto não sei em quê. Brócoli, sei lá, camisetas, bottons, riffs de. Olhei pra ele com cara de quem quer briga. Desviou o olhar até que não deu mais.
- Que foi, que tá olhando.
- Camiseta do Korn, não gosto de Korn.
- E daí.
- Daí nada, prefiro ainda o Blequissabá.
- Nada vê, isso aí nem é heavy.
Nisso o güeco chegou com o suco.
- E pro senhor?
- Uma pepsi preta e meu troco em Laguna Sunrise.

(*) pequena compra de briga com os neo-metaleiros de araque e sua musak idem. Que toda intriga vem bem no mundo das artes.

Poesia da (tua) poesia

Por tua causa
não tenho casa
vivo algumas farsas
mando meus entes às favas
comeram minhas roupas, as traças
declamo suas poesias na praça
e você me diz e disfarça:
__Não! Não importa o que faça.

Agradeço a contribuição (imposta) de Augusto Nesi

as sílfides*


Sou um cara comedido.

Quer dizer. Com medidas. Meus amigos que o digam. Pouco ouso, raro estar na cercania da desmesura. Não. Procuro sempre a marquise mais próxima, o pedaço de arame vazio pra dependurar a camiseta, ando pela faixa de segurança como um camelo, pouco me excedo em leituras, chazinhos, onomatopéias. Sou um cara desassombrado. Já vi fantasmas, já senti na face o leve balouçar das sílfides. Quer dizer. Algo que se percebe sentado em poltrona de azulzinho às 18h50min quando se dobra à direita na Júlio. Ou fazendo pequenas compras no super. Ou estendendo roupa na cerquinha. Sou um cara que manca, desassossegado. Mesmo quando não doente, manco. Rengueio. Um güeco. Não doente. Um dia um pedaço de mim esteve no País Basco. Sou de meias palavras, posto que elas só são metade. As sílfides me esqueceram. Um azulzinho não parou. O camelo cruzou a Júlio de volta. De volta pra casa.
Quer dizer.


(*) após breve porém lento período enfermo, esse escriba volta, devagarinho como requer uma perna doente.

19 dezembro, 2005

Quintilha Natalina

A Constante*




Dor de existir, ó meiga companheira,
Nem o universo é infinito...
Mas mesmo em sua curva derradeira,
Será capaz de sufocar teu grito?

(Paulo Hecker Filho - in "Perder a Vida", 1985)

* post de Clarissa Daneluz.

Anestesiada

Ele diz five o'clock
Ela diz nevermind
Ele ouve jazz
Ela (down) blues
Ele é o verso
Ela é confusa
Ele quer que o abandone no altar
Ela não pensa em se casar
Ele acha que não adianta
Ela quer se apaixonar
Ele se embriaga
Ela quer logo sair de casa
Ele não mente
Ela disfarça
Ele implora
Ela sorri.
Ele fala alto
Ela fala quando quer
Ele se encontra na poesia
Ela se (des)encontra nele.

Incubus

Uma banda de caras de San Diego. Fazem um som no mínimo interessante. Misturam o rock'n roll de agora com algumas percussões. Alguns gritos, mas Morning View (penúltimo album) é música para todo um dia.
Ouçam pelo menos a última faixa. Reparem na sutil referência do amor:

"I'm building an antenna
transmissions will be sent when I'm through
maybe we'll meet again further down the river
and share what we both discovered
then revel in the view"
Uma música de quase 8 minutos com influências orientais.
Dica: compre um bom incenso, algumas águas de cheiro e prepare-se para repetir algumas vezes a música.

18 dezembro, 2005

Os pátios da Maria Nair



E eis aí os pátios cubanos flagrados pelo olhar da Maria Nair, amiga destes apóstatas do pátio de cá.
Pequenos pedaços de Havana, nos quais ela bem disse que gostaria de morar, de preferência em frente ao mar.
Impressionantes são os pátios das casas coloniais habaneras. Por isso, quando se caminha por Havana Velha, deve-se olhar o interior das casas, seus pátios, alguns dos quais verdadeiros tesouros a espera de serem descobertos.

17 dezembro, 2005

um brinquedo entre queridos


Com tanta gente bacana assim, nosotros de los Pátios estamos de parachoques. Saindo na mídia - vejam só meu senhor e minha senhora! - carne viva e o drama das coisas em geral. A marcar a janta, vamo-nos!
(Diogo, Augusto, Almirante, Aliques e eu fazemos o contrapeso testosterônico deste pátio - tão eivado de nobres presenças femininas, las meninas.)

Foto(s): Ricardo Wolffenbüttll/Pioneiro

Meu amor é como diamante lapidado na tua carne viva.

Mulher Malvada

A noitinha fui ver a mulher malvada
que sobre o amor me contou a verdade
Quando ia me indo embora
ela disse baixinho que já era tarde
__Fique mais um bocadinho quero ver contigo
o sol nascer do outra lado da cidade
Quando São Jorge baixar a espada
vou roubar todas flores e pôr aos seus pés
nas vezes que se encolhe no meu peito e fica sem jeito...
Ah! O que queres comigo mulher?

16 dezembro, 2005

VIDA NOTURNA

Você acorda as 6 da tarde com aquele gosto de ferrugem na boca e com a impressão de que seu travesseiro não foi feito com penas de ganso, mas sim com cinzas de cigarro. Olha pro lado e tenta lembrar o nome da mulher que dorme ao seu lado. Levanta e começa a lembrar da noite passada. O nome se apagou com solvente na memória e ela dorme feito um defunto na sua cama. Imóvel! Será que está respirando? Chega bem perto dela e a surpresa é grande ao ver seu rosto, não parece a mesma pessoa com quem deitou quando o dia raiava. Verifica que há uma respiração de conhaque em suas narinas...Ela está viva! Prepara um sanduíche, dá uma mordida, pega o pacote que tinha deixado em cima da mesa antes de sair ontem a noite, abre a encomenda com o cd cheirando a novo, coloca no aparelho para tocar e se encosta no sofá. Pensa no que vai dizer para aquela mulher quando despertar. A música maravilhosa se mistura com seus pensamentos, você levanta bruscamente e escreve um bilhete para a tal mulher - Tive que sair por motivo de emergência, pode trancar a porta e colocar a chave dentro da caixa postal 203, que fica logo após a entrada do edifício.

Tranca a sala onde guarda os livros e discos, com passos de pluma sai sem fazer barulho. Pensa que se roubar o resto da casa não tem problema. Vai direto pro primeiro botequim que fica a duas quadras do apartamento, pede um café bem forte e logo mais uma cerveja. Depois de três goles o grau etílico das 5 da manhã parece retornar a sua cabeça e as pessoas parecem ter um balanço todo especial. Bate um papo com o Juvenal (dono do boteco) e conta a respeito da noite passada.

Depois de fazer um tempo, vai ao encontro do parceiro que havia lhe convidado no meio da semana pra ir em uma boate, segundo ele, muito 10. A garoa começa a cair e vocês param debaixo de uma marquise para terminar de fumar os cigarros que estão ficando encharcados. Esperam um pouco, a chuva cessa e seguem caminhada. Se aproximam da boate, a fachada parece uma construção inacabada com a luz de néon formando as palavras BAR LUPICÍNICA. Na entrada um negro enorme te entrega a comanda depois de te dar boa noite com cara de amigo de infância.

O lugar não é muito grande , poucas mesas e em cada uma delas um pequenino abajur. No teto três luminárias em formato de concha que jogam a luz no teto, formando uma luz indireta e agradável para os olhos de quem bebeu até de manhã na noitada anterior.
A cerveja vem em um balde com seis garrafinhas afogadas no gelo, estão estupidamente geladas e o vinho é servido em taças de vidro alemão, um vidro que parece cristal de tão fino. A música é o que tem de melhor. De repente você agarra o cardápio com ar de suspense, pensando no limite do cartão de crédito. Ao fitá-lo verifica que o preço cabe em seu orçamento. Que alívio!

As palavras vão sendo molhadas lentamente, o assunto flui sabendo que não tem hora pra chegar em casa. Penetrando a madrugada, a música se espalha no ambiente através da voz direta e agradável do senhor de barba longa. O duo de piano e violão que o acompanha é de primeira estirpe, músicos sofisticados, dá pra ver na expressão de cada face e no tanger de cada acorde. Calmamente os lábios envoltos por pelos brancos ao microfone cantam...”acendo um cigarro, molhado de chuva até os ossos...”

No decorrer das canções o cantor vai chamando seus parceiros para darem uma palhinha. É tudo muito emocionante naquele ambiente escuro e enfumaçado, belíssimas canções. As 4 da manhã ele diz – essa fiz em parceria com esse aqui ao meu lado, debruçado em seu piano. Seguem no compasso: – “Batidas na porta da frente: é o tempo, eu bebo um pouquinho pra ter, argumento, mas fico sem jeito calado, ele ri, ele zomba do quanto eu chorei, por que sabe passar e eu não sei, num dia azul de verão, sinto o vento, há folhas no meu coração, é o tempo, recordo o amor que perdi, ele ri, diz que somos iguais, se eu notei, pois não sabe ficar, e eu também não sei, e gira em volta de mim, sussurra que apaga os caminhos, que amores terminam no escuro, sozinhos, respondo que ele aprisiona, eu liberto, que ele adormece as paixões, eu desperto, e o tempo se rói com inveja de mim, me vigia querendo aprender, como eu morro de amor, pra tentar reviver, no fundo é uma eterna criança, que não soube amadurecer, eu posso e ele não vai poder, me esquecer...”

Todos aplaudem de pé ao final da última canção, quando alguém cutuca seu ombro bruscamente, você abre os olhos e vê a mulher com quem dormiu. Qual o nome dela mesmo? Levanta preguiçosamente do sofá do quarto dos discos e livros, olha em cima da mesa o sanduíche com apenas uma mordida, o embrulho da encomenda rasgado e a capa do cd “Vida Noturna” do Aldir que acabou de tocar no aparelho.















Uma das diversas sensações que se pode ter ao escutar pela primeira vez o cd "Vida Noturna" do Aldir Blanc...

Seu Odegar volta ao pátio*

Sei

Sei do real

Sei do virtual

Sei do mito

Sei do mistico

Sei do fantástico

Sei que já disseram

Só sei que nada sei

Sei de Glauber Rocha

Sei de Osvaldo de Andrade

Sei do Surrealismo

Sei onde está o furo

Sei onde está a tampa

Sei de Marx

Sei da revolução

Sei de Nietszche

Sei da vontade de potência

Sei de Freud

Sei de Édipo

Sei como vai o planeta

Sei do Capitalismo

Sei do Comunismo

Sei do Hippie

Sei do Beatnik

Sei que já disseram

Só sei que nada sei

Sei como caminha a humanidade

Sei que saber é poder

Sei da ciência

Sei da filosofia

Sei da poesia

Sei da religião

Sei que já disseram

Só sei que nada sei

Sei da diferença

Sei da identidade

Sei da indiferença

Sei que cansei

Sei que já disseram

Só sei que nada sei



(*) contribuição de Odegar Junior Petry.

15 dezembro, 2005


Ontem ela roeu todas as unhas. Só não roeu tanto a do mindinho porque pouca unha tinha lá - nada mais restava a não ser um sanguezinho no canto e aquela dor de beliscão que agora ficara em seus dedos. Roeu todas as unhas enquanto ouvia Chet Baker e pensava que queria muito era viver em outro lugar.

A cidade, que agora lhe cabia nas palmas das mãos de unhas roídas, já não lhe entregava surpresas, não reservava esquinas que ainda não tinham sido cruzadas, avenidas novas para serem atravessadas. Nada. O vazio dos carros, dos postes sem luz, das gentes de atar em postes também. Até os loucos todos ela já conhecia.

Não dá pra se viver num lugar onde a gente já sabe da maioria dos loucos. É preciso haver loucos escondidos, loucos pra se revisitar, loucos debaixo de escadarias, loucos fazendo malabares com objetos invisíveis. E ali já não mais havia louco algum assim, louco novo, tinindo de esquizofrenia.

Tentou levar os pés à boca, pra ver se ao menos a unha do dedão não conseguia roer também. Nada. Os anos de exercícios não praticados só lhe valeriam a falta de flexibilidade, além da farta e vasta preguiça. E lhe dava uma preguiça imensa lembrar que é preciso mudar. Mudar dói. Mais do que roer unhas com afinco ao som de Chet Baker.

antes dos 30*



porque o amor não está onde se pensa
e talvez nem esteja onde se sinta
nem isto é mortalmente antes dos 30

porque quem finge sequer sabe a cor dos olhos
e bebe graspa em vez de thinner em vez de água em vez de tinta

porque saber não quer dizer sequer suscita
a doce calma do prazer na margarida
a triste franja de olor na borboleta
a rude fada do torpor sequer excita

e se essa fonte de saber é inexplorável
que seja nácar o café e seda o lábio
que seja beijo que se guarda em envelope

e seja chave em vez de lacre em vez de trava em vez de fita

(*) Marco de Menezes, in "Pés de Aragem", 2005, inédito.

gaveta de roubados (3)

rito

No metrô iam: a flor, a mãe, o pai e a filha. A flor estava machucada, e ia pretensiosamente como um presente da mãe da filha para a mãe do moço. “Um presente machucado – pensou a filha – não é coisa que se dê”. Sendo assim, a flor machucada passou a ser dela, e a mãe do moço ganhou um vaso de ciclâmen ornado ainda por uma borboleta de pano. A flor machucada não sentia a dor da moça. A flor machucada, abstraída do sentimento que a moça portava, alegrou o seu dia. Ao passo que o ciclâmen e todos os outros dessa história permaneceram nos seus lugares como formigas, alheios à dor que cumpliciou a moça e a flor.


Beleza de post roubado do blogue ipsislitteris, lá de Niterói, e que já está aí no lado direito, no nosso algures. Sinto-me sinceramente orgulhoso de publicar textos dessa qualidade e sensibilidade aqui nesses pátios da vida. Saudações a ipsislitteris!

13 dezembro, 2005

Por amor à vida


Hoje fui ver no Santander Cultural (POA), a exposição "Por amor à vida", uma celebração ao centenário do Érico Veríssimo. Recomendo a visita, pois vale a pena. São belas fotos da intimidade do escritor, exibição de documentário e de originais, de desenhos - os quais me surpreenderam muito. Fiquei tocada muito em função do depoimento de outros escritores sobre ele, da postura retílinea dele diante da vida e ao mesmo tempo parecendo ser uma figura tão tranquila, amorosa, fazendo a diferença no compartir. Um homem gentil de todo.
Apenas recomendo a visita e deixo aqui um trecho de uma entrevista que Érico concedeu ao Antonio Hohfelt em 1973 e que traduz a impressão que ficou em mim após ver tudo isso:
"Confesso que cheguei a um ponto de saturação, autonáusea de minha obra literária, que me torna um pouco difícil escrever... e ao mesmo tempo ando tão apaixonado por literatura. Há tantas coisas novas que eu nem conheço. É por um enorme amor à vida que a gente faz arte. Multiplico minha vida na criação da dos outros."

TARJA PRETA

*um poema visual...( para Paulo e Décio )

nos dias em que me uruguaiano*




a segunda-feira escondeu uma terça bem ingrata
dentro do olho de sol na espora de prata

o velho troteando ralhou com o cusco
ralhou com o garnizé

filmou tudo o lagarto
com aquele olhar parado de morto

a terça foi saindo assim bandida
de dentro do reflexo do velho na espora de prata

no chão batido
o cusco ali

as garças na sanga
esgaçaram uns ventres de lambari

(*) Diogo, meu velho, essa foi pra provocar tua verve campeira.

12 dezembro, 2005

SACADA

Insandecida ela gritava.

- Porco, filho da puta, idiota, estúpido !!! Justamente com a Débora !
Por quê? O que ela faz que eu não faço ? De quatro ela dá ?
Ela chupa melhor que eu, é isso?

Fiquei ali, na entrada da sacada pensando :

- Como a Débora era gostosa !
Ouvindo, calado.

Me nego a discutir ou argumentar com uma mulher alterada.
Estando ela nesse estado é melhor ouvir.

- Não me conformo, tu é muito baixo, bicha, broxa, imaturo, imbecil !!!

Aos berros discursava, e com razão.
Nem eu sabia ao certo porque havia à traído.
Mas como era gostosa à Débora.
À medida que me xingava aos gritos, ia jogando meus livros, discos e pertences da sacada da casa.
O que não era danificado eu iria recolher e colocar em um saco de lixo, enquanto isso eu pensava :

- Mas era gostosa essa Débora !

Ela: Você me ama mais do que tudo?

Por Luis Fernando Verissimo

Ele: Amo.
Ela: Paixão, paixão?
Ele: Paixão, paixão mesmo.
Ela: Mais do que tudo no mundo todo?
Ele: No mundo todo e fora dele.
Ela: Não acredito.
Ele: Faz um teste.
Ela: Eu ou fios de ovos.
Ele: Você, fácil.
Ela: Daqueles com calda grossa, que a gente chupa o fio e a calda escorre pelo queixo.
Ele: Prefiro você.
Ela: Futebol.
Ele: Não tem comparação.
Ela: Você esta caminhando, vem uma bola quicando, a garotada grita "Devolve tio!" e você domina, faz dezessete embaixadas e chuta com perfeição.
Ele: Prefiro você.
Ela: Internacional e Milan em Tóquio pelo campeonato do mundo, passagem e entrada de graça. Ele: Você vai junto?
Ela: Não.
Ele: Pela televisão se vê melhor.
Ela: Faz muito calor. Aí chove, aí abre o sol, aí vem uma brisa fresca com aquele cheiro de terra molhada, aí toca uma musica no rádio e é uma nova do Paulinho. É Sexta-feira e a televisão anunciou um Hitchcock sem dublagem para aquela noite... e o Itamar está dando certo.
Ele: Você.
Ela: Voltar a infância só pra poder pisar na lama com o pé descalço e sentir a lama fazer squish entre os dedos.
Ele: Você, longe.
Ela: A Sharon Stone telefona e diz que é ela ou eu.
Ele: Que dúvida. Você.
Ela: Cheiro de livro novo. Solo de sax alto. Criança distraída. Canetinha japonesa. Bateria de escola de samba. Lençol recém-lavado. Hora no dentista cancelada. Filme com escadaria curva. Letra do Aldir Blanc. Pastel de rodoviária.
Ele: Você, você, você, você, você, você, você, você, você e você, respectivamente.
Ela: A Sharon Stone telefona novamente e diz que se você se livrar de mim ela já vem sem calcinha.
Ele: Desligo o telefone.
Ela: Fama e fortuna. A explicação do universo e do mercado de commodities, com exclusividade. A vida eterna e um cartão de credito que nunca expira.
Ele: Prefiro você.
Ela: Uma cerveja geladinha. A garrafa chega estalando. No copo, fica com um quarto de espuma firme. O resto é ela, só ela, dizendo "Vem".
Ele: Hummm...
Ela: Como, hummm? Ela ou eu?
... Silencio de 5 segundos ...
Ele: Qual é a marca?
Ela: Seu cretino!

Os outros mundos



Há um mundo onde chovem rãs incessantemente sobre as flores. Onde apartamentos são pintados de um permanente azul pálido porém amistoso. Há um mundo em que um escriturário joga gamão dentro dos sonhos de um escriturário que joga gamão. Há um mundo onde o azul do céu aceita rãs na composição da figura-e-fundo. Onde figueiras amanhecem ardentes. Há um mundo onde Charles Fort é o dono da mercearia, onde Yuri Knorozov lê mensagens ocultas em papel de pão, onde Quetzalcoatl banha suas filhas em um mar de alabastro. Onde os rodapés dos aposentos recebem, a cada ínterim, camadas de tinta transparente fabricadas por pequenos elementais oriundos do tabuleiro de gamão de dentro do sonho do escriturário. Onde os sicômoros fenecem a cada solidão. Onde as rãs chovem. Sopra uma brisa verde. Os telhados estão tingidos de nuvens.


Quero agradecer ao convite do amigo gaúcho Marco de Menezes para participar deste blog, iniciando minha colaboração neste dia nublado e quente aqui em Três Rios.

Não me queiram sempre como companhia

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhe, a todos, a vontade.

Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

O céu azul – o mesmo da minha infância – ,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ò macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ò mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Fernando Pessoa (trecho)

Caymmi

Dizem que existem na Bahia três ritmos: o lento, o muito lento e o Dorival Caymmi – sem ansiedade. Quem popularizou a piadinha foi o escritor Rubem Braga. Mas de preguiçoso ele não tem nada. Tem é cuidado. “Sempre fiz o que meu coração ditava” diz hoje o baiano. Ele compunha apenas quando pintava alguma coisa poética na cabeça de qualidade artesanal. Seu segredo? Não tinha pressa. “Respeito o tempo das coisas e sei que ele tudo cura”, afirma.
Sua música é uma utopia que por si só faz uma crítica da sociedade existente. Imagine você parado num engarrafamento e escuta um trecho de suas canções: “Quem vem para beira do mar... ai...nunca mais quer voltar...” Você já pensa que existem outras formas possíveis de viver.
Com seu amigo Zezinho, ainda adolescente, começou a tocar sambinhas inspirados na espontaneidade do povo baiano e nas festas de rua que aconteciam nos dias de santos. “Como o mar que tem seu próprio ritmo, cada pessoa tem o seu, e a sabedoria está em entender essa sua natureza”, diz Caymmi.
Gilberto Gil compôs uma música em sua homenagem:
“(...) Dorival é um monge chinês,
Nascido na Roma Negra, Salvador,
Se é que ele fez fortuna, ela a fez,
Apostando tudo na carta do amor
Asas, damas e reis,
Ele teve e passou
Teve o mundo aos seus pés
Ele viu, nem ligou
Seguidores fiéis
e ele adiantou
Só levou seu pincéis
a viola e uma flor (...)”

Fonte: Revista Vida Simples, novembro de 2005.

...pronto!


Avise aquele que conseguir achar esse cd em Caxias!

10 dezembro, 2005

Alpendre

- Carolina, busque a tesoura lá dentro pra vó !
Calmamente vó Rita fala com a neta.
No alpendre, sentada em uma cadeira de balanço ela passara as tardes bordando minuciosamente enxovais, panos de prato, lençóis, cortinas, toalhas, guardanapos ou saias.
Seus bordados venciam o tempo, eram famosos.
Com uma agilidade assustadora produzia em média 5 peças por dia, uma tarefa um pouco metódica quando analisada do ponto de vista de Carolina, que atentamente com os cotovelos apoiados sobre os joelhos e ambas as mãos segurando o queixo, divertia-se contemplando o delicado trabalho.
Uma mulher com histórias pra contar e apesar da face enrugada e do aspecto sisudo, a viúva Rita era dócil, não se tinha notícia de qualquer manifestação hostil de sua parte, sempre fora educada com todos, diplomática nos tratos e – apesar da idade – astuta nas negociações.
Se alguma dúvida ou problema surgisse na rua, era ela, Vó Rita, quem dava a última palavra, o aval, o veredicto.
Carolina além de possuir um futuro interesse nos dotes da avó - sonhava em casar e logicamente ter seu enxoval inteiro bordado pelas mãos dela - também se espelhava em suas atitudes, gestos, máximas e aforismos que a velha prescrevia seguidamente enquanto bordava.
- Um homem e uma mulher só se conhecem quando se separam!
- Um mártir, não vive de martírios.
- Só não tolero a intolerância !
Em uma ocasião quando indagada sobre o possível casamento de um humilde agricultor da região com uma linda moça de um família próspera da cidade ela respondeu:
- Pato não usa aliança porque tem os dedos grudados.
Ninguém entendera a frase, os que ouviram ficaram semanas tentando decifrá-la, alguns recorreram aos livros, compêndios, enciclopédias, e nem mesmo os mais instruídos encontraram um significado apropriado para a tão enigmática sentença.
Não importa, era uma frase dita por Vó Rita, logo era indiscutível conseqüentemente deveria fazer algum sentido.
Carolina cresceu, sorriu, casou, sofreu, teve filhos, chorou e os panos de prato que ganhara de Vó Rita ainda estavam lá – apesar de puídos – sendo utilizados na cozinha.
Em uma festa de final de ano Carolina esperou o entusiasmo dos festejos encerrarem, se dirigiu à Vó Rita que sentada em sua cadeira de balanço no alpendre da casa bordava um lindo echarpe.
Um olhar profundo nos olhos da avó e um sorriso tímido escondendo os dentes bastaram como comprimento.
- Vó Rita, a senhora não vai acreditar, ainda hoje tenho os panos de prato bordados que a senhora me deu. Que linha a senhora usa? Como a senhora faz?
A pergunta provocou um enorme sorriso na velha, que sem olhar para a neta, concentrada na agulha, na linha, no movimento e no motivo à ser bordado com a cabeça baixa responde:
- É como tudo na vida menina, eu nunca dou um ponto sem nó!

09 dezembro, 2005

fragmentos do Arco da Velha* (1)



Os galhos das tamareiras lembram lixas.
O pátio de pedra, com seu Poço seco,
parece um diagrama, os dutos de tijolo
são vastos e óbvios, a figura humana
já remota na história ou teologia,
como seu camelo ou fiel cavalo.

Sempre o silêncio, o gesto, os pontinhos dos pássaros
suspensos em fios invisíveis sobre o Sítio,
ou a fumaça subindo solene, puxada por fios.


(*) fragmento de "Mais de 2000 Ilustrações e uma Concordância Completa", de Elizabeth Bishop (O Iceberg Imaginário e outros poemas, Companhia das Letras, 2001, trad. de Paulo Henriques Britto). Inauguramos aqui uma vinhetinha de ocasião, qual seja: a de capturar fragmentos de textos nas estantes elegantes da nossa querida Livraria Arco da Velha e postá-los aqui, despretensiosamente.

Ele...


— E o que é que eu vou fazer agora com todos os meus livros murdos e súbitos?, dirce Michel, sacando rapidamente seu problema com um tiro certeiro.

(Lennon traduzido por Leminski, “Um atrapalho no trabalho”. Editora Braziliense, 1985)

*


Assopra esse balão
Pra que ele voe assim
À altura dos teus sonhos
Na medida dos teus braços
Certamente onde teus passos
Flanando, então, te levarão
*Outro post sertanejo.
Ilustra da amiga Clarissa e o meu palavreado solto.

saudação ao Augusto



все беседует*, estreou neste blogue, após largo átimo de empastamento digital, o poeta Augusto Nesi. Aprendeu direito os caminhos, e agora parece pisar manso sobre as pedras pintadas do cais. E aí, em vez de ficar cometendo poemetos aliterativos contra seus companheiros de viagem autopoiética, poderá - aqui neste Pátio - emular disparates de magnitude maior, como o postado ali embaixo, "Átrio".

Desbiboques coconutes florismiles ajujeios basquervílios e narguilépios pro animal.

E já temos mais um outro pra rachar a comanda daquele esperado pequeno bocado comensal e beberal a que nos deixaremos estar quando de posse de alguma grana, considerado já o calendário multivário e festivo do ano da graça que ora termina. Ano esse que já vai tarde, que não agüento mais tanta cousa nova nesta minha vida parva, e por vezes raras licenciosa.

Comemoremos, por ora, tovariches e dervixes desta terra alta aqui.
Saudações, Augusto, mizifiu.
(*) hu. puedes usar, si quieres, isso aqui. Escher, arriba.

08 dezembro, 2005

Meu maestro soberano


Então, hoje se completam 11 anos sem o Tom Jobim por aqui (25/01/27 - 08/12/94).
Saudades de gente que a gente nem viu. Isso é estranho. Haveria tanto a se falar dele que fico sem nem saber o que dizer. Apenas que, pra mim, ele é o maior. O maior gênio musical da nossa raça.
Estou ouvindo coisas dele desde cedo. Procurei uma imagem pra colocar aqui e pesquei umas de quando jovem - ele, tão lindo. Mas preferi essa, da fase início dos anos 90, que eu acho que traduz tanto do charme do maestro.
Salve Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, meu ídolo maior. Sempre.
Segue abaixo a minha preferida do dia, parceria com Marino Pinto - parceiro de duas das minhas preferidas entre as preferidas: Sucedeu Assim (que tem de ser ouvida) e Aula de Matemática. Porque são tantas e tudo lindo.


Sucedeu Assim
(Tom Jobim/Marino Pinto)

Assim,
Começou assim
Uma coisa sem graça
Coisa boba que passa
Que ninguém percebeu

Assim,
Depois ficou assim
Quiz fazer um carinho,
Receber um carinho,
E você percebeu

Fez-se uma pausa no tempo
Cessou todo meu pensamento
E como acontece uma flor
Também acontece o amor

Assim,
Sucedeu assim,
E foi tão de repente
Que a cabeça da gente
Virou só coração

Não poderia supor
Que o amor nos pudesse prender,
Abriu-se em meu peito um vulcão
E nasceu a paixão por você

"O conselho da Bossa Nova é de levar a pessoa à vida" (Tom Jobim)

“A morte de Tom Jobim não foi apenas a queda de uma árvore,
foi a derrubada de uma floresta” (Arnaldo Jabor)

Átrio


Fiquei a manhã inteira absorto,
observando meu avô que lia um grosso volume sentado, em silêncio, ereto em uma cadeira no átrio de casa.
Dele, além do nome, herdei - na minha opinião - seu melhor hábito :
Cobrir livros.
Com ele aprendi a cobrir os livros,
encaderná-los com jornal,
ocultá-los com papel de seda,
protegê-los com qualquer material que servisse para embrulho.

Sempre achei este hábito um pouco insidioso e traiçoeiro; mas mantê-lo, soava para mim como um atavismo ímpar.
Isso, me satisfazia, me dava um enorme prazer.

Alguns anos mais tarde fui indagado :
Por que cobrir os livros ?

Fiquei pasmo, mudo, atônito.
Não soube o que responder, afinal era um hábito, uma mania, um costume, quase um vício
e vícios não se explicam - na verdade eu não sabia porque o mantinha - não fazia sentido.

Velho miserável ! Maldito Costume !
Bravejei comigo mesmo...

Comprei a primeira passagem para a cidade de meu avô.
Corri até a sua casa, subi a escada que leva ao átrio, lá estava ele.
Sentado, em silêncio, ereto, lendo um grosso volume coberto com papel jornal.
Receoso de sua reprovação, de seu desprezo e censura perguntei :

- Meu Avô , por quê cobrir os livros?
Ele, com um sorriso malicioso e irônico no rosto, calmamente me explica :
- Garoto, não é bom exteriorizar a leitura.

07 dezembro, 2005

e

para onde?
me diga para onde vai a dor no pulso
que se sentiu um dia
ao descansar no espelho dos olhos do outro?

onde fica esse lugar que guarda ...
fica?


sonhar com pássaros

Existem pássaros que vivem no ar. Comem, copulam, dormem, defecam no ar. Nunca ou raramente tocam o chão. Ainda ontem um deles veio voando em direção ao emaranhado de fios dos postes de luz próximos à minha janela. Hoje, ao sair, ouvi que me pedia pão. Quando voltei, estava morto. Seu corpo sobre uma mesa de madeira escura lembrou-me um Padda oryzivora, de Bornéu, ou talvez um Lonchura striata, do Japão.

Os Verdes de Minha Terra














sei que a léguas daqui
a terra onde nasci
guarda as cores
verdes mais belas que vi
hoje o tempo se esvai
nesse porto dos casais
onde minhas dores
teimam em me reduzir
como se o que vivi
fosse muito pra eu estar aqui
sinto da vida
quão pouco somos
mas sei que longe daqui
guardo na estância ou perto dali
nos pagos, no vento
a infância que trago em mim

nasci vendo a imensidão dos campos
acreditando que o mundo era grande
pois como era longe aquela porteira
que prendendo um açude inteiro
ao sol convidava para banhar-me
cresci vendo a noite engolindo o dia lentamente
e parir outro dia, sem pressa, sem medo
as horas pareciam dóceis e os minutos não me cobravam nada
quando descobri que o pago era finito
que a estrada não andava em círculos e que as carretas iam longe
me joguei ao mundo como se fosse ele que tivesse me parido

não estando mais aqui
joguem minhas cinzas pr’aqui
nas fronteiras
com o vento eu possa ir
hoje o tempo se esvai
sou um farrapo que cai
morro de amores

sem cura
sem ilusão...

O MINUANO CORTOU O CORPO DA MILONGA NUA A ESPERA DAS VESTES...ELA NÃO PODE ESPERAR MEU AMIGO.
PARA O AMIGO MARCELO LAURENT, OS VERDES DE MINHA TERRA.

06 dezembro, 2005

roubado da gaveta do meu amigo Odegar*


Carranca

Buscando o intangívelNa sutil percepção da existênciaA procura de um Deus pela metadeUm ateu ao meioNa vertigem da perimetral Bruno SegallaA velocidade dos automóveisDistorce qualquer apontamentoSobre antagonismos secularesO posicionamentoPrejudica a visãoComponente fundamentalPara uma ilusãoParadoxalDe um discurso vazio cheio de tudoA carranca de CristoFazendo sombraSobre a cidadeNo terceiro milênio

Odegar Junior Petry


(*) Petry, meu camarada, estréia tanto nos Pátios como em seu monge. Irmão velho, já disse pra ele que gostaria muito dele aqui, como rotineiro.

céu de azulejo*



Encontro meu amor numa nuvem.
Meu coração - arranhão no metal de uma âncora.
Poeira de ânfora.
Meu amor parece que vai voar. E já voou.

E me convida pra passeio de barco nas colinas.
Me convida pra mergulho nas correntes de Ucayali.
Já voou?

Encontro meu amor no trânsito.
Apurada olhos graves boca séria mão na direção.
Meu amor parece que já voou. Mas não.

Encontro meu amor num balão.
Num balão desenhado em um azulejo.

Ao revirar meus bolsos tateio uma foto dela.
Ao revirar os olhos meu amor me acompanha

e chegamos juntos ao céu do seu quarto.

(*) in: Anel postiço em merengue (inédito, 2005, Edições Pórco Júpiter, bairro Lourdes)


05 dezembro, 2005

as canções que tocam dentro 8


Los Peces

Lhasa de Sela

La virgen se esta peinando
Entre cortina y cortina
Los cabellos son de oro
Y los peines de plata fina

Pero mira como beben
Los peces en el rio
Pero mira como beben
Por ver a dios nacido
Beben y beben
Y vuelven a beber
Los peces en el agua
Por ver a dios nacer
Beben y beben
Y vuelven a beber
Los peces en el agua
Por ver a dios nacer

La virgen va caminando
Y va caminando solita
Y no lleva pa compania
Que el niño de su manita

Pero mira como beben
Los peces en el rio
Pero mira como beben
Por ver a dio nacido
Beben y beben
Y vuelven a beber
Los peces en el agua
Por ver a dios nacer
Beben y beben
Y vuelven a beber
Los peces en el agua
Por ver a dios nacer

La virgen lleva una rosa
En su divina pechera
Que se la dio San José
Antes que el niño naciera

Pero mira como beben
Los peces en el rio
Pero mira como beben
Por ver a dios nacido
Beben y beben
Y vuelven a beber
Los peces en el agua
Por ver a dios nacer
Beben y beben
Y vuelven a beber
Los peces en el agua
Por ver a dios nacer

La virgen lava pañales
Y los tiende en el romero
Los pajarillos cantando
Y el romero floreciendo

Pero mira como beben
Los peces en el rio
Pero mira como beben
Por ver a dios nacido
Beben y beben
Y vuelven a beber
Los peces en el agua
Por ver a dios nacer
Beben y beben
Y vuelven a beber
Los peces en el agua
Por ver a dios nacer
Beben y beben
Y vuelven a beber
Los peces en el agua
Por ver a dios nacer

arte é intriga*



Só pra constar que Vanessa da Mata não é unanimidade aqui neste blogue.
Mas, afinal, o que seria da arte sem intriga?
E, por favor, "Não me deixe só", além de chatíssima, só tem um verso que preste.
Escolhamos as armas.

(*) como já dizia o Millôr.

A força que nunca seca


Há tempos eu não via um show tão maravilhoso quanto pude presenciar na noite de ontem. Vanessa da Mata fez lotar o Teatro do Salão de Atos da UFRGS através do Circuito Cultural Banco do Brasil. Fui vê-la porque desde que escutei “A força que nunca seca”, de autoria dela e o Chico César, na voz da Bethânia, eu fiquei impressionada, mas confesso, não esperava grandes coisas.

Tudo já começou muito bem com a abertura do Duo Araucária, com música instrumental da melhor qualidade, fazendo uma fusão de Jazz, Samba, ritmos tradicionais do Nordeste e por aí afora. Faz muito também que eu não participava de uma platéia tão em sintonia, animada, com um astral de prestígio ao artista. Vanessa adentrou no palco e na primeira música já pensei: “putz, de onde surgiu essa mulher?”. Um furacão. Um furacão com um jasmin preso às madeixas, pés descalços e saia rodada.

A presença cênica, de palco, dela é muito forte e percebe-se muito natural. Ela e sua vasta cabeleira encantaram o público da primeira à última canção. Acompanhada de uma banda de apenas três músicos jovens (um tecladista que se revezava entre o piano, acordeon e violão e aço, um baterista que fazia a vez da percussão e samplers e um guitarrista-baixista que também tocava violão) a cantora e compositora teve sua coroação em Porto Alegre.

Vanessa tem uma extensão de voz muito bonita, atinge os agudos de uma maneira intensa, sabe colocar a voz quando a canção exige mudanças e tem o grande mérito de transformar canções tão conhecidas de modo a que a gente esqueça o próprio registro original. Esse foi o caso de “Tempo perdido”, inesperada da Legião Urbana, executada no bis apenas com o som de um baixo e que ficou completamente irreconhecível – e linda.

As composições próprias, além de letras muito boas têm ritmos que passeiam sem permanecer em nada na mesmice. Um dos pontos altos de emoção foi “Case-se comigo”, canção que eu havia escutado à exaustão nos últimos dias e que levou muita gente naquele teatro às lágrimas. Além de muitas composições autorais, Vanessa cantou com propriedade desde Roberto e Erasmo Carlos, passando por cantiga de roda e até a maravilhosa recriação de “História de uma gata”, do musical Saltimbancos, do Chico, levantando a platéia com um entusiasmo difícil de ver.

Várias foram as vezes que entre uma música e outra a moça foi aplaudida de pé. Nem ela parecia acreditar em tamanha receptividade. Se dizia encantada. Ao final do bis muita gente saiu da sala, mas a maior parte do público permaneceu e pediu por mais um durante muito tempo. Ela voltou, agradeceu muito, confessou a surpresa com aquilo tudo e disse que como de fato não havia preparado outro bis poderíamos escolher o que queríamos ouvir. Muitos gritos de “Não me deixe só”, mas ela disse “ah, ‘Não me deixe só’ pela terceira vez e vocês não vão mais me agüentar”. Mas com muita graça ela contou a história da canção e cantou mais uma, muito emocionada.

É muito bacana ser surpreendida por algo que nem se esperava tanto ou tão grande. Falando aqui pode nem parecer tão impressionante, diz-se afinal que falar sobre música é como dançar sobre arquitetura. Não há como traduzir isso que nos toca fundo na música, mas foi um show pra ficar na memória, por muito tempo. E que a força de Vanessa nunca seque.

É melhor viver do que ser feliz


De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

Vinícius de Moraes

O domingo de ontem reservou boas emoções com o belo filme / documentário “Vinícius”, do Miguel Faria Júnior, lançado no Estado nesse final de semana. O documentário mescla uma narrativa da história de Vinícius de Moraes, mostrando cenas raras da intimidade do poeta, depoimentos de amigos, parentes e parceiros (Chico Buarque, Edu Lobo, Francis Hime, Carlos Lyra, Toquinho, Caetano, Maria Bethânia, Miúcha, Baden Powel, Antônio Cândido, as 4 filhas, entre outras gentes bacanas), récitas de poemas pelos atores Ricardo Blat e Camila Morgado, além da interpretação de músicas por um pessoal bacana como a Mônica Salmaso e Olívia Byington.

Uma das coisas mais bacanas do filme, pra mim, foi ver o lado mais passional de Vinícius. Já sabia dos 9 casamentos ao longo da vida dele, mas não da forma como estas paixões aconteciam. A Tônia Carrero, amiga de Vinícius, resume bem a energia amorosa de que ele precisava para criar e permanecer na constante busca por ser feliz: Vinícius precisava estar sempre na beira do precipício da paixão. Edu Lobo também diz uma das frases que Vinícius havia criado para uma de suas canções e que traduz essa busca e o modo “porra louca” como Chico também cita que Vinícius, na maior parte do tempo, conduzia a vida: É melhor viver do que ser feliz.

Chico Buarque cantando “Medo de Amar”, Vinícius dormindo e sendo acarinhado com um cafuné, Vinícius de pileque cantando “Pela luz dos olhos teus” recostado no ombro de Tom, Vinícius emocionado ao falar que Pixinguinha era o ser humano de alma mais bonita que tinha conhecido, Vinícius cantando os afrosambas com Baden, Susana – a filha mais velha - revelando histórias de família. Muitas passagens emocionantes ao longo de duas horas cravadas. Haveria muito mais a ser dito, muitas dessas passagens chegam a ser rápidas demais como a parceria com Tom, os meandros da Bossa Nova ou a cumplicidade com Toquinho no fim da vida. Mas nada que comprometa a beleza de um filme que fez as pessoas ficarem na sala de cinema até os créditos todos acabarem ao som de Samba da Bênção.

Assim, salve Vinícius, o poeta que talvez mais tenha aproximado a poesia ao nosso mundo cotidiano, o poeta formal de rimas ricas e sonetos, o poeta mais popular do Brasil. Como Ferreira Gullar comenta: Vinícius pra mim era alegria. Eu lembro dele sempre rindo. Ele ensinou o povo brasileiro a ser feliz.

02 dezembro, 2005

Pessoas Normais

Pessoa que corre
que anda
que rasteja
que pára.

Pessoa que goza
que ri
que soluça
que chora.

Pessoa que ama
que reclama
que levanta da cama
que põe o pijama e faz o café.

Pessoa que grita
que fala
que murmura
que ouve os passos do silêncio.

Pessoa que volta
que vai
que compra pães
que lambe os dedos de geléia.

Pessoa que deixa recados
que recebe aos abraços
que encurta os laços
que pisa em cacos.

Pessoa que vejo
que beijo com cuidado
e assim como está
a deixo.