23 novembro, 2005

Peito Vazio ou Um microconto pra Cartola



"Eu sempre fui sincero e você sabe muito bem", ecoava nos versos da música que o vizinho debaixo escutava a todo volume. Talvez fosse vingança por ela ter ouvido os 3 CD´s d'O Grande Encontro a partir das onze da noite na quarta passada. Agora ria quando lembrava da Elba Ramalho se esganiçando no som do banheiro com "A todo mundo eu dou psiu, psiu, psiu, perguntando por meu bem" e os barulhos de vassourada no chão clamando pelo tal "psiu" de fato.

Mas Estela dava de ombros pra sinceridade. Queria umas mentiras, uns enganos fortuitos pra alimentar o seu buraco. Agora olhava pro telefone e encarava aquele Motorola como talvez nunca tivesse olhado para alguém a quem amou. Um olhar íntegro, inteiro, concentrado. Pensava em ligar, pegava o aparelho na mão, até digitava o 910... e depois desistia. Não que a essa altura o Norberto merecesse um carinho seu, mas pôxa, aquilo não ia passar enquanto via Tela Quente no 12. Tela Quente, pé frio, companhia alguma. Esse era o retrato da sala. É a tal da falta que a gente nunca percebe e então se faz. A falta da rusga que seja, do ruído, da gritaria porque ele tinha comprado Parmalat desnatado e ela gostava do semi.

Agora ela estava semi. Semi-entediada, semi-querida, semi-bonita. Nada era pleno e talvez isso fosse durar muito tempo. Uns meses, quem sabe. Mas é como diz o Chico, "pra onde vai o amor, depois que o amor acaba?". Uns meses, então, quem sabe, bastariam pra desaguar a tristeza, beber em outras companhias, alterar a consciência até se sentir apta a dançar algo da Ivete Sangalo enlouquecidamente ou chamar o pessoal pra ir no videokê do Casarão, cantar com as putas.

O videokê, bem sabe, a música, sempre a salvava, de uma forma ou de outra. Mesmo que ao final da noite, embargada de Polares com a turminha bipolar, entoasse Cartola bem alto, já quebrando os saltos da sandália:

// Procuro afogar no álcool
A tua lembrança
Mas noto que é ridícula
A minha vingança
Vou seguir os conselhos
De amigos
E garanto que não beberei
Nunca mais
E com o tempo
Essa imensa saudade que sinto
Se esvai //

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