29 novembro, 2005


Breno escutava Nina Simone enquanto arrumava a cama com os lençóis limpos que pegara do armário. Um jogo de lençóis azul. É bom dormir no azul, pensou. Tanto quanto deve ser doce morrer no mar. Era uma noite calma, depois daquela fase tão cheia de pendengas pela qual tinha passado.

Agora é que podia se perceber vivo. Quando deitava esticava as pernas até a beirinha da cama, curtindo a sensação de saber a extensão do próprio corpo, de sua casca. Erguia o braço pra cima e roçava a mão esquerda na parede da cabeceira, sentindo a aspereza na pele, divagando sobre superfícies, contatos, o tato em si. Enquanto agora ajeitava os travesseiros, com a meticulosidade que só um virginiano com ascendente em escorpião pode ter, o celular sobre a mochila tocou. Era Clara, claro.

Clara sempre ligava em horas inesperadas e entre tantos motivos esse era só mais um deles que fazia Breno gostar tanto dela nessa descoberta recente. Há tempos queria ter alguém pra quem pudesse ligar a hora que fosse, um alguém pra falar de madrugada, quando as reflexões sobre o próprio corpo não lhe descansavam tanto assim ou quando o CD da Elizeth Cardoso acabasse e ele tivesse preguiça de levantar pra colocar rodar de novo. Agora tinha a ela. Por vezes telefonava, às três ou quatro da manhã, só pra dizer "tu tá dormindo?" e rirem juntos ou ficarem com o gancho espremido entre o ombro e a orelha, deitados, um acalentando o sono do outro.

Essa noite ela estava sem jeito, chegou até a dizer um "desculpe te encher". Mais do que depressa ele rebateu com o tradicional "tu nunca enche". Foi quando menos esperava, que ela continuou: "a gente sempre enche, Breno. Uma hora ou outra a gente acaba enchendo... é uma palavra que chega torta, é um espirro no cinema, é uma pergunta quando todo mundo se calou, é um comentário indevido, é uma piada irônica que ninguém entende... no fundo, no fundo, uma hora ou outra a gente enche sim." De fato, ele parou e teve de concordar com "é verdade. Sem perceber, apenas seguindo, a gente enche. Mas sei lá, é que tu nunca me enche mesmo". Sorriram os dois. Um silêncio ecoou no quarto enquanto Nina cantava "My baby just cares for me". Não precisavam trocar palavra alguma. Sabiam-se vivos e mais do que isso, sabiam do amor para se encherem em momentos oportunos e precisos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Camila, sabe que é ' por essas e outras' que te adoro?

camilacor disse...

Gracias, amiga Clarissa, pelas trocas todas. Sempre, pra sempre.